ARS LITTERARIA revê-se no projecto ARS INTEGRATA e é parte integrante do mesmo. É um espaço de livre-pensamento e de debate de ideias, não possuindo vinculação a correntes estéticas particulares, nem filiação clubística, político-partidária, ou de cariz confessional, pelo que não assume qualquer comprometimento com os textos e opiniões expressas no seu blog como naqueles que divulga.
Contamos com a vossa colaboração. Para mais informação ver abaixo ou escreva para: arslitteraria@gmail.com

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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

ARS LITTERATUR (7): Palavras de Natal de José Fanha



UM GRANDE ABRAÇO
do José Fanha



Escrever é uma festa, uma aventura, um mergulho, uma viagem.

Escrever é uma cana de pesca que lançamos para dentro e para fora de nós. O anzol vai por ali abaixo e na volta vêm emoções, afectos, dores, sonhos, ilusões, utopias.

Quando escrevemos, estamos a abrir novos espaços, galáxias, continentes, oceanos fantásticos que só existem através das palavras.

Quando escrevemos tudo é possível. Podemos inventar o mundo e inventarmo-nos a nós próprios. Podemos chamar alguém que está longe ou já partiu para regressar ao nosso convívio no canto da saudade e da memória.

Por tudo isto, em certas épocas, desatamos a escrever a quem amamos. Às vezes nem temos tempo para parar um pouco a dar espessura e verdade às palavras que enviamos. Ou falha-nos a imaginação no meio da lufa-lufa da vida. Ou tornamo-nos presas do mecanismo mais ou menos perverso que envolve o mecanismo das comemorações. Socorremo-nos então de frases feitas, cartões, e-mais enviados e reenviados.

O Natal é assim. Tornou-se assim? Ou foi sempre assim? Não sei.

Sei que para mim, repito, escrever é uma festa. E com esta festa comemoro a outra, a do Natal. Nascem palavras. Nascem ideias. Nasce e renasce a vida. Uma festa para viver por dentro do coração.

E nesta festa, em volta das palavras, relembro-vos a todos, amigas e amigos queridos, mais antigos ou mais recentes, gente com quem marchei braço a braço para conquistar a liberdade, para sonhar, para partilhar o novelo dos afectos e o fogo das paixões, amigos ao lado de quem mergulho nos mistérios da vida, com quem partilho o deslumbre, a inquietação ou a desobediência.

A todos gostava de juntar num grande abraço e lembrar um poema do David Mourão-Ferreira, dos mais singelos que conheço.


SURDINA DE NATAL PARA OS MEUS NETOS

Ó David Ó Inês
Vamos ver o Menino
inda mais pequenino
que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
Vamos ver se vai ser
desta vez


PS. Já agora podem visitar o blog http://www.queridasbibliotecas.blogspot.pt/
e se assim o entenderem, deixem uma palavrinha.


quinta-feira, 25 de outubro de 2007

ARS LITTERARIA (6) : Eça agora? Perdão, Essa agora!


O «BANDO DOS 7» VOLTA A ATACAR


A propósito do lançamento ocorrido ontem na BNP (ver http://arsintegrata.blogspot.com/ ) do último livro do «Bando dos 7» - Eça agora : os herdeiros dos Maias - , Ars Litteraria reproduz, com a devida vénia e autorização expressa do autor, o texto elaborado por Rui Zink para a apresentação desta obra colectiva dos escritores Alice Vieira, João Aguiar, José Fanha, José Jorge Letria, Luísa Beltrão, Mário Zambujal e Rosa Lobato Faria.



Essa Agora?!?


Bom, vamos lá a despachar isto. Para que conste dos autos, temos presentes em corpo e papel, uma tal de Beltrão, um Aguiar, uma Vieira (relação possível com futebol), uma Lobato de Faria (da família do editor, provavelmente, está na cara que é cunha), um Letria, um Zambujal, uma Fanha… Um Fanha – raio de nome.

Escreveram um livro a catorze mãos, o que é suspeito, sendo eles sete, a menos que tenham usado também a mão esquerda, o que não sendo suspeito, está fora de moda, como atestam os autos. O volume em causa intitula-se Eça Agora, e ostenta desde logo um erro de português, Essa escrito com cê de cedilha, o que, se mais fosse necessário, é prova provada de que se trata de um romance pós-moderno, escrito por portugueses pós-modernos, it est, escritores que publicam best-sellers mas nunca aprenderam a ler para não correrem o risco de ser influenciados.

A menos que o erro tenha sido voluntário, e aí a única coisa que nos cabe dizer é que, num país de escritores analfabetos, quem se finge de ainda mais analfabeto, além de batoteiro, é rei.

Mas adiante. Não é preciso, como nós, ter um doutoramento em literatura para reparar nas semelhanças entre esta obra e uma outra, publicada já há algum tempo, por um tal de Eça de Queirós, provavelmente admirador do romance Equador, porque em tudo imita o seu estilo.

Trata-se então desde logo, este Eça Agora, não de um plágio, mas de sete plágios – ou, se quisermos, catorze plágios. Só que não há crime perfeito. A coisa começa bem, com um Carlos da Maia, um Afonso da maia, mas depois descamba, pois as personagens nem sequer correspondem ao objecto original concebido há sensivelmente um século, ou seja, cem anos. De ver portanto que não se trata da obra tal e qual, mas sim do relato de uns herdeiros directos e/ou indirectos, em tudo parecidos com os originais, mas diferentes.

Dâmaso Salcede continua a revelar-se a personagem secundária mais conseguida, sendo mesmo promovido a barão, ou a conde, de Mehrscheisse, palavra estrangeira, de origem alemã, que embora evoque outras paragens, lembra muito, muito curiosamente, paragens e aragens bem portuguesas. Poder-se-ia dizer que a Mehrcheisse de Dâmaso, aliás Damásio, Salcede, reflecte bem o estado das coisas.

Dos autos consta também uma jovem Lara Marlene, cujo pai não é claro se pagou ou não dez milhões para saldar uma sua dívida, contraída quiçá enquanto era namorada de Carlos da Maia, antes de o ter tentado atropelar, pelo menos.

Até à data, impossibilitados de fazer os testes de ADN, porque não é fácil testar duas personagens imaginárias, desconhecemos se Maria Hermengarda é ou não irmã de Carlos da Maia. Por “à data” entendamos a página 299, infelizmente não conseguimos atempadamente concluir a leitura do romance para a incluir nos autos, faltando-nos neste momento doze páginas, ou seja, o equivalente literário a 175% de derrapagem nas custas da reparação do metro da Praça do Comércio, mais coisa menos coisa. O romance remete o resultado dos testes para o CSI – ou Ci eSse Ai – o que atesta a plurissignificação e intertextualidade do dito.

Um outro protagonista do livro parece ser um tal de… Por… Portugal. Portugal? Não verificámos ainda se consta da lista de procurados. O mais provável é este Portugal tratar-se de um pequeno malandro, capaz de todas as patifarias. Ou não. Ao longo do livro fala-se muito dele, e até é sugerido que é o pais (sic) das Laras Marlenes e dos Antónios Maleitos e das Zizinhas Borralhos e dos Dinos Palmas Cavalitos. Mas, para além de parecer paternidade a mais, tem um erro de português (mais um): deveria escrever-se o pai e não o pais, e mesmo isso, como tudo isto neste Portugal (o do romance, bem entendido) parece poucochinho, deveria mesmo ser um í surdo: um paí, e já é ser muito generoso.

Mais acresce acrescentar aos autos que, neste Eça Agora, é muito difícil identificar as partes do corpo, ou seja, quem retalhou e tratou que partes do corpo, porque foram mui bem cosidas, sem estranhezas de tom, ritmo ou fluência narrativa, mérito atribuível decerto sobretudo aos serviços de reprografia, e, além disso, os nomes nas epígrafes de cada capítulo estão trocados. É certo que há um fólio a indicar as autorias, mas quem será tanso ao ponto de acreditar nestes figurões? Na volta, ao dizer que o capítulo V é da Sicrana e o VI é da Beltrana, estão apenas a arranjar-se álibis uns aos outros.

Autorias? Nós diríamos antes malfeitorias. A própria nota de contracapa o admite: “Certamente, o Eça escreveria melhor, mas não diria pior.” Canalhada anti-patriótica, todos – e referimo-nos aos quinze!

Mais acresce acrescentar que não achámos graça nenhuma, por passarmos férias em Cancun e Armação de Pêra, e gostarmos, quando os autuados a dada altura escrevem, com acinto:
“E Carlos, na mais negra das depressões (…) Tudo lhe era indiferente. De Cancún, seguiu para Armação de Pêra. Queria, de facto, sofrer.” (297)
Tão pouco nos agrada que digam:
“- Mas que hei-de fazer – inquiriu João da Régua. (…) e viver hoje em Portugal, entre louvores a Salazar e a ostentação dos novos-ricos, podes crer que não é coisa fácil.” (133)
O respeitinho é muito bonito. Aliás, é preciso não esquecer que, segundo alguns primeiros, os escritores são engenheiros das almas.
Já indício grave nos parece a seguinte indicação:
“- A propósito… Que raio de ideia foi aquela de tentares atropelar-me? (…)
“- Carlinhos, eu quis atropelar-te. Mas foi com um Bentley! Se isso não é amor, é o quê?” (237)
Até porque aqui já não nos parece haver sátira, mas realismo socialista. Afinal o carro é a única arma com a qual podemos matar o cônjuge ou o vizinho sem incorrermos no risco de sermos presos. Achamos que este é um muito mau exemplo a dar às crianças e ao povo.

Enfim, que mais resta dizer? Nunca foi feito em Portugal um livro como este* – a catorze mãos – com escritores que se divertem e nos divertem a brincar – muito a sério – com a literatura.
E se reincidentes são, só duas coisas restam: ou prendê-los, se aí estiver a Polícia; ou então, que remédio, lê-los e deixarmo-nos levar (presos?) por este Eça Agora. (Sim, com cedilha.)


* A editora Cristina Ovídio corrige uma, duas vezes, dizendo que já é o terceiro livro do bando.

Rui Zink / Outubro 2007

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

ARS LITTERARIA (5) : Rui Zink no confessionário...


O meu caso com o mercado


O mercado? Sempre nos demos bem. Sempre tivemos, perdoem-me o despudor, um bom comércio carnal, satisfatório q.b. para ambas as partes.

Eu e o mercado! Chão que já deu uvas, e agora dá vassoura de bruxa, que é como no sempre pitoresco Brasil se designa a filoxera, a doença em forma de mosquito que ceifa a vida à vinha.

O que mais posso dizer? Talvez que – passamos muito bem um sem o outro. É quase um acordo que temos. Eu não lhe cedo às leis, ele não me reconhece cidadania…

É justo.

Mas, se hoje em dia o mercado e eu andamos de candeias às avessas, um tempo houve em que, confesso, tentei escrever para ele. E queixas, devo dizer, se outros têm (quem é quem tem sempre detractores), eu tenho nenhumas. Até porque quando me aprocheguei, ele, afável, retribuiu-me a gentileza e inclusive mostrou-se disponível para inquirir – pessoalmente! – se por acaso não haveria uma vaga para mim no Ministério do Comércio Literário.

Infelizmente (e reconheço que a culpa é sobretudo minha) na véspera da assinatura do contrato apanhei uma bebedeira de caixão à cova. A agridoce ironia é que estava precisamente a celebrar a minha entrada no mercado e a fazer brindes de próspera e duradoura colaboração. E ainda dizem que brindar com água é que dá azar.

O resultado, como acontece nestas coisas, não foi dos melhores. Cheguei atrasado logo no primeiro dia. E, como não fora dormir a casa, apareci desgrenhado, sujo, a gravata em desalinho, pés a cheirar a peúga usada (sempre transpirei muito dos pés, suponho que é emblema da minha proverbial ligação à terra) e, para cúmulo, crostas de vomitado nos colarinhos da camisa.

Obviamente, fui posto na rua em três tempos, e o mercado (não o censuro) guardou algum rancor, até porque já tinha empenhado a sua palavra – a mesma que lhe agradeci traindo-a – em círculos que, para bom entendedor meio eufemismo basta, não gostam mesmo nada de sofrer desapontamentos.

Rui Zink
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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

ARS LITTERARIA (4) : (Re)Visitação de Miguel Torga na BNP


Tor(g)a!, Tor(g)a! Tor(g)a! - homenagem a Adolfo Rocha (1907-1995)


É hoje inaugurada, pelas 18h, na Biblioteca Nacional de Portugal, a principal exposição comemorativa do centenário do nascimento de Adolfo Rocha (1907-1995), médico para os seus pacientes, escritor Miguel Torga, para os seus leitores e para a posterioridade.

Mais ainda do que os livros de poesia e de contos, pelos quais é sobejamente conhecido, vale a pena ler o seu Diário, que é uma espécie de autobiografia em 16 volumes, em que a prosa é alimentada pela poesia e vice-versa, mas acima de tudo e simultaneamente uma reflexão-crítica e um testemunho consciente e informado da nossa história recente, com particular enfoque no salazarismo, do qual foi destacado opositor.

A presente exposição não se esgota na obra conhecida, nem tão pouco na menos divulgada, mas visa também revelar a dimensão do homem íntegro que foi Miguel Torga (pseudónimo que adoptou a partir de 1934, explicitdo na sua obra A Terceira Voz, sendo o pronome em homenagem a dois grandes vultos literários, Miguel Cervantes e Miguel de Unamuno, e Torga por identidade com uma urze da montanha existente na sua terra-natal (S. Martinho da Anta, no concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, em Trás-os-Montes)

Transcrevendo:

«Promovida pela Direcção Regional de Cultura do Norte e comissionada por Carlos Mendes de Sousa, esta exposição, que percorrerá várias cidades de Portugal e Espanha, é um dos elementos mais importantes do programa nacional de comemorações do centenário do nascimento deste nome maior da literatura portuguesa.
Os materiais ora apresentados correspondem a uma parte substancial do espólio do autor, doado em 2004 pela sua filha (Clara Rocha) a Coimbra para que ficasse na casa-museu recentemente inaugurada, incluindo raríssimos manuscritos de poemas conservados pelo poeta, dactiloscritos com emendas à mão de prefácios e contos, 1ªs edições – algumas ainda com o nome civil antes do aparecimento do pseudónimo em 1934 –, traduções para diversas línguas, bem como, cópias de cartas do autor para diversas personalidades. A exposição mostra ainda 2 retratos de Miguel Torga (por Guilherme Filipe e Isolino Vaz) e inúmeras fotografias.


Síntese biobibliográfica:
Adolfo Rocha nasce na aldeia de S. Martinho da Anta em 1907. Concluída a instrução primária (1917), entra para o Seminário de Lamego de onde sai em 1920 para trabalhar na fazenda de um tio paterno no Brasil, local onde escreve os seus primeiros versos (1924). Em 1925 regressa a Portugal e conclui em 3 anos os sete de liceu, matriculando-se em 1928 na Faculdade de Medicina de Coimbra. Durante o curso (1928-1933) funda a revista Sinal e colabora na revista Presença com a qual vem a romper em 1930. Em 1934 adopta o nome literário de Miguel Torga com o qual assina A Terceira Voz. Em 1936 funda a revista Manifesto e entre 1937 e 1939 publica 4 livros de A Criação do Mundo cujo último volume (O Quarto Dia) foi apreendido e determinou a sua detenção no Aljube. Em 1940 casa com Andrée Jeanne Françoise Crabbé e estabelece consultório em Coimbra. São dos anos de 1940 a 1944 alguns dos seus textos em prosa mais conhecidos: Bichos (1940), Contos da Montanha (1941), Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes) - Conferência (1941), Rua (1942), O Senhor Ventura e Novos Contos da Montanha (1944). Entre 1945 e 1991 publica 7 obras em prosa, 2 peças de teatro e 9 obras de poesia. Os 16 volumes do seu Diário são publicados entre 1941 e 1993.
O seu empenhamento cívico leva-o a participar nas campanhas de candidatura à presidência da República do General Norton de Matos (em 1949) e de Humberto Delgado (em 1958). Recusa o prémio Almeida Garrett que obteve em 1954 e realiza múltiplas viagens pela Europa (1950, 1953 e 1958), Turquia, Norte de África (1953) e Brasil (1954). Proposto como candidato ao Prémio Nobel da Literatura em 1959 (e de novo em 1978), virá a recusar o Prémio Nacional de Literatura em 1969, aceitando neste mesmo ano o Prémio literário Diário de Notícias. Distinguido com vários prémios internacionais (como a Condecoração de Oficial das Artes e Letras, da República Francesa, em 1989) é alvo de múltiplas homenagens e distinções nacionais entre 1978 e 1992, destacando-se as dos 50 anos da sua actividade literária (1978), o prémio Camões (1989) e o prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1992), entre outras.»
Cf. http://www.bn.pt/agenda/evento-torga.html

A exposição decorre entre 10 de Setembro e 12 de Outubro, podendo ser vista das 10h às 17h. Entrada livre.
Local: Biblioteca Nacional de Portugal - Campo Grande, 83 - Lisboa. Metro: Entrecampos

In memoriam ephemera
(programa das comemorações): http://drcn.do.sapo.pt/

In memoriam perennis
(antologia, bibliografia, biografia, fotos, etc.):
Miguel Torga (1907-1995): a voz do chão / Teresa Sobral Cunha
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terça-feira, 4 de setembro de 2007

ARS LITTERARIA (3) : Anti-barb(ár)ie azul de Cristina Vieira


Subsídios para a história da literatura e do teatro


Ars Litteraria
orgulha-se de vos apresentar um texto de CRISTINA VIEIRA (escritora, poetisa, professora, etc.), que a nosso pedido aceitou (re)publicar aqui o seu excelente Prefácio ao texto dramático O barba-azul : Ken kills the barbies?, também da sua autoria, editado pela Apenas Livros (v. http://www.apenas-livros.com/ ).

Este, é sem dúvida, mais do que um excelente aperitivo para o prato principal (a própria peça que o suscitou), que, pela sua abrangência e profundidade de análise, ultrapassa claramente o texto cénico sem deixar de incidir sobre ele. Na verdade, entendemos destacá-lo por se tratar, não apenas de uma "mera" apresentação da peça teatral, mas por conter uma notável síntese histórico-crítica do universo literário dos "contos de fadas" e das suas correspondências com o fenómeno barbie, sem esquecer a sua contextualização psico-sociológica, entrosando as perspectivas sincrónica e diacrónica de modo a favorecer uma percepção crítica ao leitor/espectador/consumidor.


Fica desde já o desafio de o lerem atentamente neste formato, ou mais comodamente, pela aquisição do próprio livro, e de o comentarem.



PREFÁCIO


What is greater about this country is that
America started the tradition where the richest
consumers buy essentially the same things as
the poorest. You can be watching TV and see
Coca-Cola, and you can know that the
President drinks Coke, Lis Talor drinks Coke,
and just think, you can drink Coke, too. A
Coke and no amount of money can get you
better Coke that the one the bum of the corner
is drinking. All the Cokes are the same and all
the Cokes are good. Lis Taylor knows it, the
President knows it, the bum knows it, and you
know it
ANDY WARHOL



O que haverá de comum entre a personagem Barba Azul dos contos de fadas franceses do século XVII e o boneco Ken fabricado pela empresa de brinquedos Mattel em 1960? O que haverá de comum entre a personagem feminina anónima que não consegue resistir a uma tentação, a mulher do Barba Azul, e a boneca mais coleccionável do mundo, a Barbie? Todos são universais e famosos, conhecidos do grande público consumidor, acessíveis a qualquer bolso e proporcionam bem estar, tal como a Coca-Cola, permitindo uma entrada de acesso fácil ao mundo da fantasia e do sonho.

Estas personagens/objectos representaram um marco na história de uma época e de uma sociedade específicas, que os distinguiu, pelo seu carácter inovador na data em que surgiram, mas também eles passaram a ser partes constituintes de uma tradição literária/icónica que os foi inscrevendo no tempo.

Vários contos de fadas de tradição oral como O Chapéuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, A Gata Borralheira, entre outros, foram passados à escrita por Charles Perrault no século XVII. No entanto, Bruno Bettelheim na obra Psicanálise dos Contos de Fadas considera que o conto O Barba Azul, para além de não ser um conto de fadas, pois só a chave com sangue indelével é mágica, sendo ela que denuncia o facto da jovem esposa de Barba Azul ter entrado no quarto proibido, também afirma que o conto foi inventado pelo autor, pois, que ele saiba, não há antecedentes directos desse conto em contos populares. Na altura, o género emergente dos contos de fadas fez moda entre 1685 e 1700. Mas também ele foi desprezado pelos Antigos por constituir um género menor. Foi Perrault, advogado do partido dos Modernos, quem veio em defesa destes contos de tradição popular francesa, que ele ironicamente apelidou de “bagatelles”. Em grande discussão académica quis elevá-los à categoria dos grandes géneros clássicos, como a epopeia e a tragédia, defendidos pela Academia Francesa, alegando para tal cumprirem estes a mesma função das grandes obras clássicas – instruir divertindo. Hoje, os contos, assim como as personagens que os habitam, fazem parte de um reportório dito “clássico” que vai sendo revisitado de tempos a tempos.

Também a boneca Barbie, nascida em 1959 pelas mãos de Ruth Handler, e o seu noivo Ken fizeram furor numa sociedade que sendo a fábrica de grandes mitos/ícones também os reduzia à categoria de objectos, produzidos em massa para uma sociedade consumista. Esta sociedade – tipo viu-se reflectida numa Cultura Pop que a TV ajudou a popularizar: mitos como Marilyn Monroe, Liz Taylor, Elvis Presley co-existiram e existem na mesma prateleira com objectos como a Coca-Cola, a Pepsi-Cola, notas de dollar, latas de sopa, pacotes de cigarros,hamburguers e sanitas. Eles foram simultaneamente os heróis, os símbolos de uma nova geração, mas também eles foram as “vítimas” dessa mesma sociedade que os nivelou e os reduziu à mesma categoria indistinta – a de objectos, de embalagens apetecíveis. As serigrafias de Andy Warhol, as obras de Claes Oldenburg construídas com material plastificado, como por exemplo “soft toilet”, e, claro, a boneca Barbie, a chamada “sexy symbol de plástico” são alguns dos símbolos máximos deste “barbie world” onde “life in plastic, it’s fantastic!” como diz a letra da canção Barbie Girl dos Aqua.

As primeiras edições dos contos de Perrault foram feitas avulso no Tipógrafo do Rei, no jornal de época Mercure Galant, etc.; a colectânea, com todos os contos já incluídos, Histoires ou Contes du Temps Passé, já foi editada pelo Tipógrafo Claude Barbin e por algumas edições de literatura de cordel, a chamada “Bibliothèque Bleue” ou “Littérature de Colportage”. Os livros da chamada “Bibliothèque Bleue” eram de pequeno formato, muito baratos e distribuídos por retroseiros e apregoadores em toda a França que, de porta em porta, tanto vendiam laços e alfinetes como livros. A sua cientela de aldeia eram os camponeses, os comerciantes e a burguesia de província. Estes eram produzidos em papel azul que servia habitualmente para embrulhar pães de açúcar e eram ilustrados com gravuras antigas sobre madeira. A “Bibliothèque Bleue de Troyes”, iniciada em Troyes, em 1602, pelo tipógrafo Jacques Oudot, a mais conhecida e representativa da cultura popular da época, tinha no seu corpus obras de carácter didáctico, como almanaques, guias de medicina e de agricultura , manuais de boa conduta, mas também livros de piedade e de divertimento, como canções, romances de cavalaria, romances sentimentais e recolhas de contos. Na realidade, foi só no século XIX, com a segunda vaga dos contos de fadas e com o romantismo no seu auge, que os contos de Perrault , de Mme d’Aulnoy e de Mlle L’Héritier foram mais divulgados nestas colecções de índole popular, já com um público mais alargado. Os contos de fadas reganharam uma nova vitalidade e dimensão com a chegada do cinema de animação, quando Walt Disney em 1937 produziu o primeiro filme animado nos E.U.A., Snow White and the Seven Dwarfs, argumento baseado na história de Jacob e Wilhem Grimm, que foi um verdadeiro êxito de bilheteira. Outros lhe seguiram: A Bela Adormecida, A Gata Borralheira, A Bela e o Monstro, etc..

Também a boneca Barbie, lançada na “New York City’s Toy Fair” em 1959, conheceu de imediato um enorme sucesso de vendas entre o público mais jovem. Nas décadas seguintes, vários golpes de marketing foram-lhe garantindo o sucesso de vendas: outros companheiros foram criados para a boneca, entre os quais o seu noivo Ken; em 1985 vários criadores de moda da alta costura desenharam roupas para a boneca, etc. Curiosamente, a venda desta boneca baixou drasticamente quando a empresa em 12 de Fevereiro de 2004 anunciou que o romance entre “the perfect plastic couple” tinha acabado, à semelhança do que se passava entre os casais de actores em Hollywood. Talvez a fantasia deva ser sempre fiel a si mesma!

Hoje, os contos de fadas e os seus heróis e heroínas, à semelhança da boneca Barbie e do seu noivo, pelo lugar de destaque que ocupam no imaginário colectivo, continuam a ser revisitados na literatura, no cinema, no teatro, na dança, nas artes plásticas, mas também em artes ditas menores, como a publicidade, por exemplo.

Nesta “aldeia global” em que vivemos, à crescente pluralidade de formas de expressão artística, junta-se a necessidade da interpenetração das mesmas, numa tentativa de explorar o desconhecido, mas também de guardar os registos do passado, no caminho da arte total.

É nesta senda da necessidade de actualização do passado, de adaptação à realidade actual de uma sociedade “plastificada”, globalizada, a vários níveis, que propomos a reescrita deste conto do século XVII, procurando, desse modo, ganhar o interesse do público em geral, e do público jovem em particular, mas também procurando divertir-nos muito.


Como surgiu, afinal, a criação deste texto colectivo escrito por alunas e professora?

Os alunos começaram a chegar ao Clube de Teatro da Escola Secundária de Miraflores até perfazer um total de onze alunos: nove raparigas e dois rapazes. A escolha do texto a apresentar na “Semana da Escola” e na “Mostra de Teatro de Oeiras” tornava-se difícil. E como já diz o povo “A necessidade aguça o engenho“. E foi precisamente dessa necessidade em adaptar um texto à realidade do grupo que foi escolhido o conto em questão, tendo-se procedido às devidas adaptações não só de carácter genérico, mas também temático, de acordo com linhas de escrita e de representação da época, de acordo com mensagens que se pretendiam veicular, de acordo com o público que se pretendia atingir, mas também de acordo com o prazer que a própria representação do texto pudesse proporcionar aos actores e actrizes que o representavam. Assim sendo, as alunas, de acordo com as personagens que lhes foram atribuídas (cada uma deveria representar um pecado capital), criaram um texto individual que a professora compilou, adaptou e transformou. Ao longo dos ensaios da peça, e dos dois Ensaios Públicos da mesma que aconteceram durante a “Semana da Escola”, foram-se fazendo ajustes ao texto, aproveitando-se sugestões dos alunos de acordo com as dificuldades sentidas e com as ideias que iam surgindo durante o trabalho prático dos ensaios: troca de papéis, aproveitamento de novas ideias para indicações cénicas, feitura de pequenos cortes ou alterações na fala de algumas personagens; um pouco do que se poderá chamar o “work in progress”.


Como se procedeu, então, à actualização deste conto?

Nas últimas décadas, tem-se procurado revitalizar o género teatral e em particular o subgénero teatro musical, veja-se o sucesso dos musicais de Andrew Lloyd Webber Evita, Cats, The Phantom of the Opera, o primeiro e o último adaptados recentemente para o cinema musical. O cinema musical também está a conhecer um novo revivalismo, com filmes como Moulin Rouge de Baz Luhrmann ou The Dreamgirls de Bill Condon, entre outros. Esta moda também está a querer criar raizes em Portugal e em particular no teatro, basta verificarmos o sucesso dos musicais de Filipe La Féria Amália, My fair Lady e Música no Coração.

Procurando ir de encontro do “gosto” do público da época e dos actores do grupo de teatro, a peça reescrita procura, também ela, inscrever-se nesta nova vaga do teatro musical, mas também vive da mistura dos géneros, marca da sociedade actual, como foi referido anteriormente: Assim, para além de pequenos apontamentos musicais que percorrem a peça, com recurso ao uso da canção e da coreografia, houve a necessidade de jogar entre o registo da tragédia e da comédia, imprescindível à expressão da realidade múltipla e global da sociedade actual. Teremos o que se poderá catalogar de tragi-comédia com apontamentos musicais.

Para atribuir um carácter de veracidade à peça, aproveitámos a universalidade que constitui o comportamento das personagens do conto de Perrault- ainda hoje existem mulheres curiosas e homens prepotentes e maus- mas tivemos que datar o texto e fixá-lo no espaço, o que também constitui uma das características do género teatral: segundo as regras clássicas da tragédia, deveria haver unidade de tempo (a acção passar-se em 24 horas), de acção e de espaço (a acção condensada, deveria decorrer toda no mesmo espaço).

A acção passa-se no ano de 2007. Há várias marcas no texto da referência ao ano em causa, mas a mais marcante e aquela que denuncia o mundo da comida de “Plástico” está presente numa fala da personagem que simboliza o pecado da gula – a barbie Gila quando esta diz:“ - A propósito, já viu o novo filme de Richard Linklater Fast Food Nation? Fui vê-lo em estreia a New York, agora em Janeiro”. Também a acção principal da peça ocorre no tempo de 24 horas: o tempo que decorre entre a partida e a chegada de Barba Azul a casa,pela madrugada.

Quanto ao espaço seleccionado, não foi por acaso que escolhemos o Palácio da Pena em Sintra. Precisávamos de uma casa abastada, pois o Barba Azul era um homem de muitas posses, mas também de um monumento que tivesse uma torre, uma vez que no conto, a irmã do Barba Azul tem que subir a uma torre, sendo este o momento de maior tensão dramática da peça. Também escolhemos este espaço por ser um lugar “famoso” (o lugar ideal para ser habitado pelo popular “casal de plástico”), com tradição religiosa (o lugar adequado para a elevação e queda dos sete pecados capitais representados pelas sete barbies), isolado, misterioso, pleno de vegetação luxuriante (o lugar favorável ao enredo da peça, onde se conta a história de um assassino em série que escolhia um pequeno quarto do seu palácio para guardar as mulheres que degolava). A acção principal decorre toda neste espaço, de múltiplas galerias.

Quanto à selecção do tipo de personagens, segundo a tragégia, as personagens deviam ser de categoria elevada e segundo a comédia deviam ser de estirpe baixa. Todavia, no texto, se temos personagens elevadas, devido à sua posição social, o comportamento das mesmas não corresponde ao seu estatuto: Ken é um homem abastado, mas também ele é manifestador de um comportamento de baixo nível, apresentando- se como um assasino em série; por outro lado, temos a mulher de Ken e a irmã, as sete barbies e o amigo Romeu, todos eles aparentemente de classe média/alta, representando as barbies o que de mais baixo existe em termos de moral humana, os sete pecados capitais, o que está conforme à tipologia da personagem definida para a comédia.

Ainda na tragégia clássica, havia sempre a introdução do elemento coro, necessário para comentar a acção e ajudar ao avanço da mesma. Nesta peça, o coro das mulheres mortas surge num momento de grande tensão dramática, o momento em que a mulher de Ken descobre o quarto escuro com as mulheres assasinadas pelo marido: o coro intervém, numa primeira vez com uma mera função lúdica: utiliza-se a canção adaptada de Rui Veloso “Não há Estrelas no Céu” para as mulheres mortas “gozarem” o facto de Marianne se sentir completamente perdida, mas o coro, no último verso da canção transporta toda uma mensagem profética, que nem é perceptível à heroína, quando avisa que a sua salvação será a música “Se não fosse o Rock and Roll/ o que seria de si”, pois é o músico Romeu que, no final da peça, irá salvar Marianne da ira do marido. A segunda intervenção do coro das mulheres mortas vai no sentido de adensar o momento de tensão: este intervém para exacerbar o medo na frágil personagem aterrorizada. Mais uma vez a perversidade é jogada como arma na voz do coro. Logo a seguir às duas intervenções do coro, temos a cena em que Marianne parece enlouquecer, evocando-se as palavras de Ofélia, namorada de Hamlet num momento de loucura “- Good night, ladies; good night, sweet ladies, / good night, good night”. A presença do coro no texto é envolvida numa “babel” linguística que se move entre a letra de uma canção portuguesa, um poema francês e uma fala inglesa, procurando-se, desse modo, o aturdimento do leitor/público, ao qual lhe é permitido apenas o prazer do texto..

Não obstante,afastando-nos dos dois grandes géneros clássicos, também esta peça nos remete para o universo primitivo do teatro religioso medieval, a avaliar pela falta de densidade psicológia das personagens. Não se regista qualquer evolução das mesmas ao longo do texto. O facto de Ken e das barbies no final serem castigados, só por si, não é sinal de evolução das personagens dentro do texto. Estas apresentam-se antes como personagens- tipo, representando cada uma um vício, mostrando-se como embalagens vazias que vão desfilando na “passerelle” como manequins que avançam, rodopiam e retrocedem perante o “olhar” do público. A título de exemplo, mencione-se a fala central de Gila à mesa, em que esta tanto faz a crítica da comida de plástico como faz o elogio da mesma às amigas, num discurso perfeitamente contraditório.

A maioria das acções da peça imitam acções reais do dia a dia, o que é uma das características da comédia: o marido que se ausenta para o trabalho e deixa a mulher sózinha; as amigas que vêm a casa da jovem esposa para vasculhar o novo lar; o jovem músico que se apaixona pela mulher de Ken quando vê a sua fotografia e a socorre do marido violento em momentos de apuro. Aparentemente, nenhuma atitude dos heróis emana de uma presença dos deuses, que tanto os aconselham para o bem,como os instigam para o mal, o que é norma da tragédia clássica: Ken decide matar as suas mulheres só porque elas são curiosas e lhe desobedecem. Poderiamos, todavia, considerar a chave mágica que denunciou a mulher de Ken como a presença desse mundo superior no texto, mas deixamos essa interpretação ao leitor. Há ainda a considerar que na peça há vários momentos de intensa tensão dramática em que a catharsis (processo usado na tragédia clássica que serve para purgar as paixões como a piedade e o terror, precisamente para afastar a presença de paixões mais perigosas como a luxúria, a cólera, o orgulho) é posta em prática. Por exemplo, o momento em que as barbies à volta da mesa escutam a descrição nojenta do filme Fast Food Nation feita pela barbie Gila, e reagem com a expressão “Que horror!” e também o momento em que Ken, ignorando o apelo da jovem esposa que se ajoelha a seus pés, se prepara para a matar. Também nestes momentos de grande tensão é introduzido outro processo característico da tragégia, o chamado “comic reliese”. Para aligeirar o primeiro momento, a barbie Jéssica desafia as amigas a cantar e a dançar uma música de cabaret, usando uma linguagem cómica para o fazer e no segundo momento, o “super garanhão” Ken, assim que se apercebe de que um homem está prestes a entrar no palácio, para salvar a sua mulher, procura esconder-se como um cobarde, acabando por ser morto com uma pancada de guitarra na cabeça. Toda a peça é percorrida por diálogos que suscitam a comicidade, por personagens que, pela suas características, são transportadas ao ridículo: a mulher do Ken, por exemplo, com a sua leviandade extrema, e por situações também elas risíveis, tal é o caso em que Gila, o monstro da comida de plástico, procura aterrorizar a afectada amiga Betty.


Quanto ao final da peça, ele é quase simultaneamente trágico e cómico, pois, respectivamente, temos o assassinato de Ken em palco, imediatamente seguida do casamento de sua mulher Marianne com Romeu, precisamente o assassino do marido.

Segundo os fundamentos da doutrina clássica, os fins da poesia deviam ser o divertimento e a moral. De facto, há uma moralidade que se pode extrair da peça: no momento do casamento do jovem casal, as barbies, que simbolizam os sete pecados capitais, não suportando a felicidade da amiga, rebentam, à semelhança dos gnomos quando não conseguem atingir os seus fins maldosos. E o assassino em série Ken é assassinado com uma guitarra, pelo músico Romeu, o que poderia ser entendido como o fim clássico do castigo dos vícios, ou seja, sobre a maldade vence o amor e a arte, simbolizada na guitarra. Todavia, essa moralidade poderá ser contestada pela ambiguidade presente no facto de que a mulher desobediente e curiosa é que sai victoriosa, não sendo ela um modelo de virtude, já que na peça até se acentua o carácter fútil da personalidade da mesma:a mulher romântica e deslumbrada com festas e riquezas que desobedece ao marido para satisfazer o seu instinto de curiosidade e que maltrata a sua empregada. Talvez não haja uma única moral a tirar, talvez haja muitas a encontrar e talvez a única finalidade da peça seja o divertimento retirado do prazer experimentado pelo rodopiar festivo dos sete pecados capitais na casa assombrada, cena central em que as barbies visitam a amiga Marianne, também ela “barbie”, a cena, sem dúvida, mais movimentada e mais divertida, com diálogos provocadores, contraditórios e viperinos, cenas repletas de sensuladidade, canções e danças até ao cabaré. A única personagem verdadeiramente virtuosa nesta peça é uma personagem secundária – Ana- a irmã da fútil Marianne, a que usa a sabedoria popular para se exprimir, através do recurso sistemático ao provérbio, a que consola, a que aconselha, a que permite o salvamento da irmã da fúria assassina do marido. E por fim, que final consolador temos para ela ? Apenas a felicidade de assistir à felicidade da irmã no momento do casamento desta. A ela nada lhe é dado pela sua conduta virtuosa, mas a solidão. E se o amor e a música vencem, estes fazem-no à custa de quê? De uma desobediência e de um assasinato.

Sobre os temas desta peça, o leitor/público, depois de ler o título, de identificar as personagens e de relembrar o que elas representam no seu imaginário, poderá começar a adivinhar os temas nela implícita – a impotência do herói masculino num mundo feminino? A fantasia já não é o que era?. Depois de fazer a leitura da lista das personagens da peça na primeira página da obra/ ou de observar o guarda-roupa das barbies durante a representação (cada barbie é identificada na camisola com um pecado capital que corresponde à personalidade de uma determinada personagem da banda desenhada), poderá ficar ainda mais nítida a possibilidade de leitura dos temas a encontrar – O mundo da fantasia é pervertido pelo real? As “barbies” representam os vícios do mundo de plástico, da sociedade de consumo? Todavia, toda a estrutura do texto, pelo que foi sendo dito anteriormente, se alicerça em “terreno movediço”, em “teias” de uma moralidade aparente, onde a contradição e a ambiguidade circulam e se desenvolvem, para ludibriar a expectativa de um leitor/espectador que procure a moralidade fácil.

Quando a forma do texto, pelo que foi sendo dito, ela própria cria e anula nela própria os princípios que procura sustentar, temos como único fim a estética do prazer, a estética de uma era chamada de Pós–Moderna (que até no tempo de Perrault teve outra designação aparentada, o Barroco) nomeadamente aquela em que o seu símbolo máximo é a embalagem esvaziada do seu conteúdo, da sua mensagem a veicular. A sua finalidade última parece ser a do prazer do texto, o texto que pelo seu jogo incita o público à diversão, estabelecendo-se uma dependência mútua entre texto e público, tal como a entende Roland Barthes na sua obra Le Plaisir du Texte datada de 1973, quando afirma que o texto é um objecto “fétiche” e logo depois acrescenta “ce fétiche me désire”. Também Jean-François Lyotard, no artigo “Moralités postmodernes” publicado no volume 27, nº1, em 1994, na revista Études Littéraires, considera que o niilismo avança a par com o desenvolvimento. A cultura contemporânea apropria-se de todos os objectos, de todas as formas, mesmo de todas as paixões, representa-as para as fazer circular. Num ciclo sem fim. Dá-os ao divertimento de todos. Como se a jubilação estética dos povos fosse o seu fim. Mas “la mise en spectacle” não é um fim, é um efeito, e um meio para o sistema se desenvolver. A violência da aparição é neutralizada pelo colocar em circulação. O sistema faz esquecer o absoluto, e ele esquece esta omissão.

Pensamos ser importante referir que ao contrário de Séneca que escrevia as suas peças para serem lidas, esta peça foi escrita para ser representada, isto é, actualizada duplamente pelo leitor e pelo público.

Indo também na linha de cenografia de muito do teatro que se faz hoje, todo o cenário foi concebido em linhas minimalistas: caixotes amontoam-se para se poderem desmontar. Fomos buscar os tons fortes à Arte Pop: as três cores primárias amarelo, vermelho e azul contrastam com o rosa eléctrico envergado pelas sete barbies. Quanto ao guarda- roupa e acessórios, estes foram desenhados em traços barrocos, procurando-se o exagero das formas, nas saias das barbies e nos coletes dos dois elementos masculinos, mas também a profusão de adereços exagerados que caracterizam cada uma das barbies: máquina de calcular gigante para a barbie avareza, três telemóveis para a barbie Ira, leque, espanador, écharpe com penas, etc. Há também um único objecto avulso no cenário que repousa sobre uma mesa, uma garrafa solitária, que simboliza todo o bric-à-brac existente na casa, marca da sociedade que se poderá pretender ver criticada.


Para terminar, parece-nos importante fazer um pequeno comentário ao título, no intuito de poupar críticas. Não foi por acaso que se utilizou a língua inglesa, a par com a nossa língua mãe. Ela vem marcar o carácter dual, ambíguo, plural de todo o texto. Quanto ao recurso ao uso da letra minúscula, até nos nomes próprios, fizemo-lo quer por transgressão aos códigos de escrita, quer por homenagem a este género menor, o conto, que está na origem da peça em questão, género esse também ele marcado como espaço de transgressão por excelência, onde a fantasia tudo permite. Mas se quisermos trazer alguma leitura moralista a esta peça, o uso da letra minúscula servirá também como meio formal para se fazer a crítica de uma sociedade indiferenciada, onde tudo se reduz à categoria indistinta de objecto, onde os valores deixaram de fazer sentido e se misturam e onde o vencedor é o estupor.

Cristina Vieira


Ficha técnica:
Cristina Vieira [et al.]
O barba-azul : Ken kills the barbies? / Cristina Vieira. Lisboa : Apenas Livros, 2007. (Teatro no Cordel / dir. de Diana Nunes Coelho ; 5)

terça-feira, 10 de julho de 2007

ARS LITTERARIA (2) : Auto das Danações

Quem disse que os livros estão caros, é porque ainda ignora a meritória intervenção social (porque não dizê-lo, dado que as obras do seu catálogo rondam apenas 3 € cada) e, é claro, também cultural, da editora Apenas Livros (pela criteriosa selecção de autores pouco comerciais/comercializados, mas de inquestionável qualidade).

Desta vez o destaque vai para a sua publicação mais recente - o Auto das Danações, do poeta Jorge Castro - uma obra de teatro com cordel (vejam para crer), retomando uma tradição poético-jocosa de crítica social e política, que remonta pelo menos aos autos vicentinos, mas que se prolonga pela commedia dell'arte e pelo teatro de António José da Silva ("O Judeu").


Segundo o próprio autor «(...) a inefável São Rosas, lançou-me, há uns meses atrás, um desafio que consistia em produzir um Auto, à moda de Gil Vicente, mas com a envolvência de personagens da "pós-modernidade". Daí nasceu o "Auto das Danações", a minha obra mais recente, uma vez mais contando com a alegre e interessada edição da Apenas Livros, Lda., que acedeu, até, ao despautério de alinhar numa edição especial [...]. A tanto chegou o espírito de colaboração...»


E no prefácio da obra, abre as hostilidades, sem cerimónias:

«Versalhada em um acto, que o tempo não está para desperdícios que não atem nem desatem. Tendo Gil Vicente como fonte cristalina, fresca e exemplar nessa arte de bem zurzir quem o mereça, apreciando de viés o que o mundo nos mostra e tentando entrever o que ele nos esconde, assim foi concebido este Auto. Será Auto de notícia que, se a vossa benevolência o permitir, ficará para o porvir como retrato a preto e branco, não revelado, isto é, em negativo, deste nosso tempo. Não é todo o mundo – ou até tão só todo este nosso aprazível recanto - feito destas graças e desgraças. Mas muito dele é assim feito, por defeito, por acaso ou por conveniências. De qualquer modo, os retratos foram tirados a personagens da nossa praça, envoltos num caldo de cultura que, também esse, tem tonalidades muito nossas e entranhadas.Há, como se presume, na massa do ilustre sangue lusitano, alguma valentia sorna, contraposta aos brandos costumes – que tanta vez escondem a hipócrita ou cínica violência - que nos moldam e por quem nos deixamos moldar e que, misturados no cadinho da vida, motivam esta tão peculiar forma de estar, sem paralelo mundial – pelo menos, tanto quanto diviso daqui da minha rua…» / Jorge Castro, Abril de 2007"

Deste teatro-poesia de escárnio e [bem] mal dizer, que se presta a ser lido e não "apenas" representado estamos todos necessitados, e por isso aqui fica o desafio aos leitores (o autor gostaria também do vosso feed-back, e por isso nos deixa o seu contacto: jc.orca@gmail.com ).
Por outro lado, sugerimos aos profissionais da arte de representar que não percam a oportunidade de (re)pegar num texto carregado de ingredientes para um grande sucesso de bilheteira (hélàs, a estreia absoluta ocorreu "por Caria"). E, para lá do teatro de "carne e osso", a peça presta-se igualmente à representação com bonifrates, assim como a ser músicada em género de opera bufffa (alô José Eduardo Rocha, se não fizeres tu farei eu, assim o dramaturgo, ou melhor, o comediaturgo, o queira).

Venham mais peças, Jorge! Sem esquecer a poesia, claro está!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

ARS LITTERARIA (1) : O Bicho da Escrita


Brot[eri]ando textos


ARS LITTERARIA está empenhado na divulgação de textos literários (ficção, poesia, etc.) e, enquanto aguarda o contributo de outros autores (alô Cristina Vieira, Fernando Venâncio, Jorge Casimiro, Jorge Castro, José Fanha, Júlia Lello,... venha daí essa poesia!!! alô Cristina Vieira, Jorge Castro,... venha também daí o teatro). E aqui fica também o desafio a tutti quanti queiram colaborar nas diferentes áreas, incluindo o ensaio e a crítica.


Por ora, divulga O bicho da escrita, um excelente texto irónico-reflexivo de Rui Zink (prémio PEN CLUB 2004, pelo seu livro A palavra mágica), acerca da prática da escrita nos nossos dias, que se encontra disponível em livre acesso no site do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (também editado em livro pelo IPLB em 2004):

http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?xid=1122 - O bicho da escrita / Rui Zink


também transcrito em: http://www.novacultura.de/bichoescrita.html - boletim bibliográfico novacultura apoiado pelo TFM-Zentrum für Bücher und Schallplatten in portugiesischer Sprache
...e que serve de lema ao blog literário de Ana Elisa: http://www.obichodaescrita.blogspot.com/

Note-se que a par da sua já vasta obra literária e ensaística, Rui Zink foi também o autor do 1.º romance interactivo, produzido na Internet entre 4 de Junho e 31 de Agosto de 2001 (ver http://eventos.clix.pt/ebook/ - Os Surfistas), actualmente só disponível em livro e que na edição alemã tem o título de Afghanistan! (ver http://www.novacultura.de/0209ruizink.html).

Entre as suas últimas obras ficcionadas destacamos: A palavra mágica (Publicações D. Quixote, 2005), O Aníbal leitor (FNAC, 2006) e A Espera (Teorema, 2007).

Dele vaticinou em 1998 o editor Francisco Lyon de Castro (Publicações Europa-América) que seria o próximo português a receber o Prémio Nobel...
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terça-feira, 3 de julho de 2007

ARS LITTERARIA (0)


words, words, words / David Zink (1984)




ARS LITTERARIA releva que a arte da escrita literária - e só esta será arte, que não a mera cópia ou descrição técnica - seja na forma de ficção, poesia, teatro ou ensaio, é uma manifestação não só reveladora do ilimitado potencial criativo do ser humano como essencial à sua própria existência e que se revela particularmente envolvente quando se combina com outras formas de arte (como a música, a ópera, o teatro, etc.).

Consequentemente, ARS LITTERARIA revê-se no projecto ARS INTEGRATA e é parte integrante do mesmo.

ARS INTEGRATA é um projecto aberto assente na criação artistica multidisciplinar, fundado por David Zink a partir de um ensemble homónimo - de dimensão e composição variáveis, mas com um "núcleo duro", misturando vários géneros e formas artísticas, compreendendo elementos populares e eruditos...... e pretende ser também uma associação emergente e um espaço de discussão, conhecimento, troca de experiências e informação, abrangendo todas as formas de arte (incluindo a música, a dança, as «belas artes», a literatura e a poesia, etc.), aberto tanto a artistas e escritores, como a investigadores e ao publico em geral interessado nestas matérias.

ARS LITTERARIA pauta-se por critérios de elevada qualidade literária (tanto nos plano estético e criativo, como técnico), mas não discrimina escolas, estilos ou géneros artísticos.





ARS LITTERARIA oferece uma plataforma de partilha e discussão com todos os que se interessam por esta forma de arte (escritores, poetas, dramaturgos, críticos, ensaístas e leitores).

A sua colaboração é essencial, contribua e/ou divulgue aos vossos amigos. Somos fiéis ao lema "Trás outro amigo também".

N.B.: ARS LITTERARIA é um espaço de livre-pensamento e de debate de ideias - independentemente das seus colaboradores -, não possuindo vinculação a correntes estéticas particulares, nem comprometimento clubístico, político-partidário, ou de cariz confessional, pelo que não assume qualquer comprometimento com os textos e opiniões expressas e/ou praticadas tanto no seu blog como naqueles que divulga (idem, para sites).

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