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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

ARS LITTERARIA (21): Revelação de um novo segredo de Fátima - crónica de Rui Zink

-Chanson d'amour sacrée et profane (2009) / David Zink


Obrigado, padre Rui


Finalmente uma boa notícia! Poucas coisas nos fizeram sorrir tanto nas últimas semanas como a fuga romântica, o rapto sabínico, o amor estouvado e cândido do padre Rui em Terras de Basto por uma moça de seu nome Fátima. Há semanas que todos pedíamos aos céus um motivo, um que fosse, para nos levantarmos da cama neste Portugal sucatinho, dissoluto, frio, estupidamente material. A história já virou lenda: os dois jovens apaixonaram-se secretamente na mansidão da catequese e, com a paciência que só os santos e os amantes têm, aguardaram que Fátima atingisse a maioridade. E só então fugiram, parece que para Espanha. Bom destino: Paris está muito visto, cheio de casais em escapadelas culposas, e a malta acaba toda por encontrar-se. A Espanha é mais recatada, sobretudo em época baixa.

O fascinante é que nem Fátima (hoje 18 anos) nem o padre Rui (28 anos) são, a acreditar nos relatos dos vizinhos, muito vividos. É pois um amor casto e puro, como aquele cantado na Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, que, em seu tempo, fez furor na Europa. Como todos sabemos, trata-se de uma conversa entre três cardeais, o francês, o espanhol e o português, cada um contando suas aventuras de juventude. O francês é um sedutor, como todos os franceses, e o espanhol um gabarolas, como todos os espanhóis. Mas quando perguntam ao nosso se também já teve “um caso”, ele responde com o imorredoiro verso: “Pode-se lá viver sem ter amado alguém!” Depois, passando aos pormenores, descobre-se que só o português (tinha de ser) amou à séria. O cardeal da peça sucumbe, choroso, à memória do amor frustrado. O padre Rui, esse, redime-o hoje. E a nós todos, nestas vésperas de nascimento do Menino. A própria Igreja mal esconde o seu sorriso benévolo perante o amor dos dois jovens. E como não? Ao descobrir esta nova vocação, o padre Rui (bonito nome, por sinal) deu-nos ainda, coisa não de somenos, uma razão mais para acreditar em Fátima…

Rui Zink
in Metro, ano 6, n.º 1111, de 2009-12-02
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sábado, 31 de outubro de 2009

ARS LITTERARIA (20): Rui Zink reveals a Divine José Saramago in the nobel prize's last book, "Caim" (Cain)

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S(even Saramago) is a Divine number (2009) / David Zink


A propósito de "Caim", o último livro de José Saramago, prémio nobel da literatura, e do que dele se disse, Rui Zink, revela-nos a derradeira prova da existência de Deus...


Um santo homem


Querido Metro,

acho que há uma prova da existência de Deus: é que uma entidade da qual passamos a vida a falar tem forçosamente, nem que seja na nossa cabeça, de existir. Aliás, quando está escrito “No princípio é o verbo” isso dá para os dois lados, como de resto tudo no texto bíblico: dá para falar da criação do mundo (foi a Palavra Divina), e também para dizer que é através da palavra (humana) que a humanidade descobre Deus. Por isso me zango quando as pessoas dizem “é só conversa”, “o silêncio é d’oiro”, “eles falam, falam, falam”. É que não é só a falar que a gente se entende, é a falar que a gente é gente. No princípio é o verbo? Pois no meio e no fim também. A palavra é divina, mesmo quando não é palavra divina. Dito isto, confesso que gosto muito do Saramago e gosto muito da Bíblia. Ambos têm idade para merecer o nosso respeito e ambos dizem coisas controversas, umas vezes mais acertadas, outras mais perturbantes – mas sempre folgazões e intrigantes. Um grande livro, um grande homem, e sobretudo ajudam-nos a viajar. No viajar é que está o ganho. Saramago não é teólogo? Graças a Deus, pois a religião é uma coisa demasiado séria para ficar só entregue a especialistas. O bom José tem a autoridade de quem conviveu com o mundo e a linguagem ao longo de toda uma vida. Não será um erudito do texto sagrado, mas pensa pela própria cabeça, sabe ler, leu muito, tem voz própria, e é isso que se espera dum escritor. E querem maior prova da existência de Deus que um ateu, aos 87 anos, esmiuçar o episódio de Caim, o proscrito, resgatando-o como irmão humano? Ou gesto mais generoso do que estender a mão ao primeiro dos “malfeitores”, ao contrário dos que (tenho uma lista) passaram estes dias a praticar a triste arte da preterição, dizendo que nem vale a pena falar do assunto de que estão a falar? Com franqueza, se isto não é um santo homem, indiquem-me o vosso santo caixote do lixo.

Rui Zink
In: Metro, ano 6, n.º 1088, de 2009-10-28

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domingo, 12 de julho de 2009

ARS LITTERARIA (19): A visita de Deus, narrada por Pedro Sevylla de Juana

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God's visitation (2009) / David Zink



A visita de Deus


Na vasta extensão rodeada de terreno arborizado, sedosa pradaria dividida pelo curso em arco de um regato bem nutrido, ao princípio do Outono, quando a Lua perseguia sua plenitude circular, enigmático e aprazível apareceu o Ente. O velho Liparus Glabirostris, da família dos Curculiónidas, profundo pensador e professor exímio, receou sempre. Desconfiava do suposto deus inclusive na época de general arroubamento. Não era para menos, a estranha aparência -tamanho e forma- ajudava em alto grau despertando braçados de suspeita.

O Ser, delimitado por linhas suaves e planos carentes de ângulos, aceitava as olhadas interrogantes sem suspender a emissão de sons compassados, sugestivos até para ouvidos insensíveis à cadência ordenada. No seu interior impenetrável abrigava, sem assomo de dúvida, algum tipo de vida afastada da convencional. Livre de fome e sede, em harmonia com a agradável temperatura ambiente, atuava como qualquer recém-nascido satisfeito, ainda que desprovido do gracioso bracejo e do gesto encantador. Permanecia no próprio lugar de sua aparição, expressava-se utilizando um complexo linguagem de signos visuais e acústicos, e não manifestava dependência alguma do exterior. Resulta compreensível que centenas de conjeturas se tecessem ao redor de sua privativa natureza.

O velho Liparus pôde reconhecer nele determinadas qualidades da condição divina. Saltava à vista que era alheio a tudo o conhecido. Certo, diferia sua essência das peculiaridades primordiais dos três reinos; não parecia pedra, não parecia planta, não parecia animal. O estado de repouso em que se encontrava imerso devia de ser transitório, pois tinha chegado até ali desde algum lugar tão remoto que não lhe precedeu a notícia de sua existência. A aptidão para trasladar-se ao ditado do desejo lhe proporcionava uma independência amplíssima: rasgo que distingue aos seres superiores. Único, autónomo e inexplicável: semelhantes atributos constituíam os fios que bordavam a perfeição de sua índole. Carecia, pelo contrário, da primeira das qualidades que os deuses exibem: a capacidade sem limites de influir no curso dos sucessos, geradora de prodígios que ressaltam uma trajetória extraordinária. Atitude oposta à de um demiurgo amoroso de sua obra, aparecia, somada, uma inescusável despreocupação pela formosura da verde floresta, pelos inverosímeis raios de sol que filtrava, pelo rumor harmonioso da água ao acometer os meandros e estreitezas, e até pelos curiosos que lhe cercavam com ânimo investigador. Nesse ponto exato, equidistante do sim e do não, impossibilitada para desprender-se, ancorava Liparus sua dúvida.

Talvez fora só um clarão da mobilidade potencial, mas a agitação se ensenhoreava do interior. O que podia ser tomado pelo rosto, superfície circular de um cilindro achatado, espelho do sensível coração, efetuava estranhos trejeitos a cada instante. Os reflexivos pesquisadores, encabeçados por Calathus Melanocephalus, pertencente à família dos Carabídeos, e seu mais direto colaborador, Agonun Dorsale, primo seu; constataram que mudava a forma seguindo um processo repetido a cada dia. Tomando o anoitecer como ponto de referência, a metamorfose reproduzia seus passos, um após outro, de crepúsculo a crepúsculo; reiteração, método.

“Prodígios? Consegue ser portento suficiente a comoção ocasionada pela sua vinda até nos mais céticos”: argumentavam os partidários, dirigidos pelo eleito coordenador de famílias Prionus Coriarius, o maior dos Longicórneos: “Negligência ante a criação? Veio para permanecer a nosso lado; eis aí o grande exemplo de carinho que necessitava este mundo egoísta”. “Sim, sua existência é monótona e repetitiva, mas, feitos a sua imagem e semelhança, nossa própria existência é repetitiva e monótona. Nos deslocamos perseguindo o alimento, nos agita o desejo de copular, corremos para atacar ou fugir. A Divindade repousa porque se basta a si mesma: nada lhe falta e a nada teme”.

Os religiosos vincularam com esse argumento, mais que com nenhum outro, o meritório modo de alinhar as condutas pessoais trás a forma de ser atribuída à Divindade. “Aquilatemos o processo de nutrição rejeitando a gula. Limitemos a cópula às exclusivas exigências da propagação da espécie. Abracemos nossos inimigos. Só dessa maneira seremos capazes de amansar nossa agitação culpável. E sentenciaram: “A calma é o bem e o tumulto o mal; na redução das necessidades apoia-se a virtude”.

Surpreende a instabilidade das convicções generalizadas na sociedade: os Escolítidos, cavadores de galerias corticais - até então tachados de simples e parcimoniosos - passaram a ser percebidos como coerentes e equilibrados. “Viver para ver”: pensavam os suspicazes.


O Círculo de Teólogos, por encargo do estamento crente, soldou entre si várias cavilações formando um verdadeiro corpo de doutrina, dogma de obrigado conhecimento e imediata difusão. Avançava o credo pela senda racional até o limite de suas possibilidades, momento em que fazia uso da fé. “A Divindade existe desde antes dos inícios, porque é o início; e seguirá quando tudo se extinga, porque o conhecido e o suspeitado têm nela sua raiz e seu sepulcro. A Divindade não necessita engendrar descendentes, porque sendo única ao tempo é eterna”.


Dytiscus Latissimus, da família dos Ditíscidos, aparecia em público luzindo a casula amarela e preta de aparência solene, ladeado por seus acólitos, dois luminosos Lampírides. Partindo das verdades teológicas propagadas há pouco, tinha fundado o Imobilismo Expectante, irmandade integrada por um crescente número de adeptos. Subido a qualquer saliência, e dono de todas as respostas, perguntava: “Que razão teve a Divindade para tomar corpo e vir com nós? Mistério. Mistério que as mentes correntes como as nossas não podem compreender. Veio, e isso deve encher-nos de orgulho e regozijo; quis servir-nos de guia e exemplo, e isso deve bastar-nos. Mas, cuidado, poderia ir-se; devemos cumprir, num instante e até o último pormenor, os ditados de seu temperamento. Me encarregarei de interpretar e divulgar suas mensagens com a assistência dos discípulos mais comprometidos. Eles e eu renunciamos desde este mesmo momento ao acasalamento, e nossa mobilidade roçará o limite da estática. Os irmãos na fé construirão uma Ara onde os fiéis possam adorar à Divindade e pedir-lhe dons. Além disso contribuirão a nosso parco sustento”.

Enquanto tudo o dito sucedia na pastagem que bordeia o arroio, o extravagante Ser continuava sua atividade mínima. A deidade, uma cabeça redonda e plana da qual surgiam dois grandes apêndices desiguais, amorosos braços dispostos a fechar-se ao redor de qualquer eleito, apenas dava sinais de vida. A estranha entidade encarnada dessa guisa, carente de tronco e de extremidades traseiras, insensível ao interesse suscitado no seu ambiente, continuava a sistemática reforma dos rasgos faciais e a entrecortada emissão de sons, audíveis a considerável distância.

Sem estorvos dignos de ser tidos em conta, Carabus Coriaceus, caçador astuto e guerreiro de tenacidade reconhecida, tomou o mando dos soldados em uma cerimónia memorável. Ao pé do altar - argila ainda húmida recoberta de pequenas pedras de cores - uma charanga formada por Gryllus Campestris e Oecanthus Pellucens, músicos estrangeiros, batia os élitros em homenagem à Divindade. Animosa, atacava com brio marchas capazes de alertar aos casacas verdes, guarda composta por Lytta Vesicatoria; e aos casacas roxas, escolta de Meloë Violaceus. Ao seu compasso, a cohorte de ferozes machos Lucanus Cervus, desfilava em estado de excitação combativa. Chefes, soldados e uma boa parte da população, viam na Divindade o grande caudilho que tornaria respeitado e temido à ordem Coleóptero; orgulhoso da complexa diversidade das famílias que o integram, das poderosas mandíbulas de seus indivíduos, da beleza das asas, da funcionalidade de antenas e escudo e do notável modo de vida conseguido. Por último se apresentava a ocasião de submeter aos povos vizinhos, exigindo inchados tributos. Teriam a oportunidade de vingar a histórica afronta dos odiados Himenópteros, em particular dos Apócritos, em extremo laboriosos e rápidos viajantes.

Dytiscus, Prionus e Carabus andaram distanciados durante uma comprida temporada por questões de âmago: haviam de dilucidar quem dos três ostentaria a supremacia. A força proporcionava argumento a Carabus, Prionus esgrimia sua representatividade, a genuína vontade do povo; mostrava Dytiscus na sua mão a chave da vida eterna. Reunidos em parlamento sendo já noite cega, após ásperas discussões se descobriram compartilhando objetivos: a permanência da Divindade, a proteção da identidade coleóptera e o estabelecimento de uma nova organização social. Acordaram unir seus esforços e tomar o poder formando um triunvirato de pares. Como primeira medida sopesaram as consequências de ilegalizar a investigação filosófica, atividade supérflua quando se conhece cada palmo das numerosas ramificações da verdade. Só o temor à rejeição dos puristas lhes inclinou a penalizar as condutas em vez dos princípios. No dia seguinte, o obstinado praticante da lógica Calathus Melanocephalus, e o escrupuloso docente Liparus Glabirostris, perseguidores da certeza dos fatos provados, acusados ambos de intrigantes foram confinados no seu domicílio.

Um estrangeiro, Lygaeus Saxatilis, Grande Sacerdote do aliado ordem Heteróptero, com o propósito de introduzir o novo culto entre os seus, solicitou licença para estudar a natureza da Divindade e as teorias que a explicavam. Locusta Migratória, chefe dos Quelíferos, pelo contrário, denunciou que o crescimento do exército coleóptero – soldados, armas e bagagem - transgredia os acordos do pacto assinado depois da Grande Derrota. Se somaram à desaprovação, Tettigonia Viridissima em nome dos Ensíferos, Blatta Orientalis, Grande Chaberlán dos Blatarios; e muitos outros: Dermápteros, Odonatos, Apterigotos e Efemerópteros, que no crescente belicismo dos Coleópteros viam um perigo para a paz entre as diferentes Ordems.

Calathus e Agonum, na sua tentativa de escapar de uma morte certa, burlaram o cerco imposto a seus domicílios. Se ocultaram logo na derme telúrica, e seguindo túneis larguíssimos surgiram no território dominado pela ordem dos Himenópteros, vencedora da Grande Guerra, que após um longo período de coexistência pacífica, volvia a ser considerada hostil por causa da portentosa mobilidade de seus indivíduos. Ali prosseguiram Agonum e Calathus o estudo dos numerosos dados recolhidos, ajudados por conscienciosos pesquisadores locais: um grupo de Apis Mellifera e o controvertido Vespula Vulgaris, dissidente himenóptero amparado ao asilo dos coleópteros e retornado a sua pátria de modo encoberto. Tal escrutínio derivou em um melhor conhecimento da substância divina, de cujas características podia derivar-se utilidade prática. As raias de forma cambiante desenhadas no círculo capital, coincidentes uma e outra vez em momentos semelhantes de diferentes dias, serviriam para dividir o tempo em frações exatas e alcançar a tão desejada simultaneidade das atividades comuns.

Seguindo indicações de Véspula, duas vezes traidor, a incursão noturna dos Lamia Textor ao serviço de Carabus Coriaceus, encontrou o laboratório, destruiu os valiosos documentos e degolou aos pesquisadores absortos nas suas coisas. Sofreram os opositores um revés próximo ao desastre, e a Divindade foi adorada em qualquer lugar, pois os fiéis reproduziam ad líbitum a sagrada imagem, traçando o círculo capital e as duas raias laterais de seu emblema.

Estendido o culto, generalizados os sentimentos piedosos, sincronizada a vontade comum, a ordem dos Coleópteros entrou na etapa mais frutífera de sua história, carregada de motivos para dar as graças à Divindade. Era indubitável que a Entidade, protetora dos crédulos, propiciava o progresso com sua única presença. Entre isto e aquilo se desnudaram as árvores de folha caduca, orgulhoso de sua força paralisante chegou o frio, e em um lapso breve foi expulso pelos dias radiantes de sol e sossegados de ventos. A vida eclodia de novo e um grupo de crianças de Homo Sapiens se apresentou na esplanada com sua ordinária algaravia. Desde os mais profundos cantos das luras, desde as taças mais altas das árvores, medrosos, cautelosos, os insetos todos perceberam a renovada calistenia das evoluções lúdicas. Ao entardecer ouviram com nitidez as seguintes palavras, cujo significado desconheciam: “Olhem, um nicho de argila adornado com pedras de cores. Guarda um relógio de pulseira. Ah! A pilha está já nas últimas: os números mudam muito devagar e a música quase não se ouve”.

Horas mais tarde, apaziguado o contorno, caiu a noite e a normalidade se hospedou na pradaria, no terreno arborizado circundante, no arroio que os cruza. Só então os insetos se atreveram a sair de seus esconderijos: um pé e depois outro, receosos ou temerários; e tudo para descobrir que a Divindade tinha partido deixando vazio o altar. O Chefe Religioso Dytiscus Latissimus, lembrou orgulhoso seu vaticínio acerca do que acabava de ocorrer. Alguma ação ou omissão ofenderia à Divindade. Unicamente a penitência podia favorecer seu retorno. Começou então um reiterado exercício de laboriosidade e obediência cega às autoridades civis, religiosas e militares. Ainda ficava alguma esperança.

Pedro Sevylla de Juana

http://www.sevylla.com/

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sábado, 18 de abril de 2009

ARS LITTERARIA (18): a Lovecraft story, by Rui Zink


Recebemos novas do escritor Rui Zink, que actualmente se encontra a dar aulas na University of Massachussets Dartmouth, e um novo conto - Love Craft - em torno da metafísica das realidades virtuais e dos amores cibernéticos, que abaixo reproduzimos:

Craft models (2009) / David Zink


LOVE CRAFT

Tal como os lutadores profissionais estão como zombies entre combates – e essa espera pode durar meses – também ele se sentia desempregado, apenas meio vivo, entre cada noite. Não, nem sempre sonhava com ela, aliás nem sabia quem “ela” era, e muitas vezes mesmo sem se recordar de pormenores sabia que o sonho tinha sido um pesadelo e que acordava mais cansado do que quando se deitara. Mas sabia que só quando dormia se encontrava – fosse com o que fosse. Com “ela”, com os monstros lovecraftianos que havia na sua psique, com a essência divina da aventura humana, com a verdadeira e secreta geometria do planeta. De dia, pálida sombra de uma coisa qualquer. Mas atenção, não era só de dia. Não se tratava aqui de nenhum culto romântico da “noite” ou de álcoois tardios no Bairro Alto. Era o sono, apenas o sono. Napoleão justificava a insónia com o não querer que o império lhe escapasse por entre os dedos enquanto dormia. Ele era o contrário: tinha medo que a verdadeira vida lhe escapasse por entre os dedos enquanto estava acordado.

Que, depois, mal ou nada se lembrasse dos sonhos, era apenas um pormenor, lamentável (por uma questão de satisfação), mas sem grande importância.

Esta história podia ter um final feliz, porque um belo dia foi atropelado numa passadeira e entrou em coma. Finalmente estava totalmente imerso num contínuo onde delícias e horrores eram apenas duas das mil e uma faces de um mesmo oceano. Mas, a pedido da mulher, desligaram a máquina.

Rui Zink
Massachusetss, 2009-03-29

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sábado, 28 de março de 2009

ARS LITTERARIA (17): Apocalipsis - novo (en)CONT(r)O da alegoria

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A respeito do juízo final



- Prometeram os diferentes deuses a fiéis e infiéis um exame imparcial no final dos tempos, e um veredicto concludente. O prémio ou castigo eternos seriam as ineludíveis consequências. Pois bem, para os habitantes passados e presentes de todos os planetas e galáxias do Universo, chegou essa hora.

Assim inicia seu parlamento o porta-voz escolhido em Castela e Leão pelo Deus dos Cristãos Católicos. De boa figura, ergue-se na saliência que representa Valdepero respeito à Terra de Campos, a vasta planura desprovida de árvores que contém parte das províncias de Palencia, Leão, Zamora e Valhadolid, onde escuta o auditório. Chega a sua metade o dezasseis de março, e a cúpula celeste aparece sombria, mal iluminada por um sol lívido.

- Quis Nosso Senhor reuni-los neste lugar, idóneo para acolher tal aglomeração, porque o ponto onde levanta-se o estrado pertence já a O Cerrato, geografia semelhante ao Vale de Josafat referido nos livros sagrados. Naquele espaço rendem suas contas os judeus, congregados em torno de Yaveh.

Cala a voz, e dez mil trombeteiros a reforçam com uma rajada musical ao mesmo tempo inquietante e tranquilizadora. Um gesto enérgico, quase militar, do emissário, os emudece.

- Nosso Senhor julgará a cada indivíduo separadamente, mas, isso sim, o conjunto declarará de maneira simultânea. Os julgados exercerão sua própria defesa, sendo, também, acusadores de si mesmos. Capazes de ter emoções e sentimentos, para sofrer idêntico exame, se somam os animais que lhes acompanharam. Se alguém tem dúvidas, agora pode resolvê-las, porque uma vez iniciada a cerimónia tudo transcorrerá mentalmente.

Isso diz o mensageiro, e espera um instante por se alguém dentre o público faz o gesto inquiridor.

- Fale, senhor Sebastián, vigésimo pároco de Villalpando; qual é sua dúvida?

- Entendo que vai julgar-se às consciências e às vontades, é assim?

- Assim é, a diferença existente entre o que achavam uma actuação justa e o comportamento efectivo, estabelecerá a cota de mérito atingida. Esse exame farão no interior de seus corações os questionados, e Nosso Senhor o conhecerá num instante.

- Diga você, Zopenco, asno servidor do primeiro prefeito de Bolaños, qual é sua dúvida?

Ouço um zurro claro, rotundo, quase inteligível, apesar da enorme distância que me separa de onde encontra-se a besta. E ao momento escuto a palavra do porta-voz, entendida por todos os presentes, vaga-lumes e cigarras inclusive.

- A obediência devida, como você a chama, é comum a todas as espécies, incluída a humana; e exime se lutou-se com toda energia contra ela na defesa dos próprios convencimentos.

- É seu turno, formiga sem nome, habitante do termo de Sahagún, entre os rios Cea e Valderaduey em fim do século dois antes de Cristo; qual é sua dúvida?

Ouço um sussurro reiterado e a entoação revela juventude, adolescência talvez, infância ingénua e confiante.

- Quem foram alimento de outros ao princípio da existência, carecendo de tempo para decidir pelo seu cálculo de maneira responsável, e quem nasceram mortos ou faleceram antes de nascer, receberão outra oportunidade. Uma vida nova lhes espera, independente da anterior, sem conexão alguma com ela. Vão ser o princípio de outro ensaio divino, que partirá do progresso conseguido no qual agora conclui.

- Pergunte, vírus do tipo A(N1H1), participante na epidemia de gripe de 1918; qual é sua dúvida?
Sinto um silencioso estremecimento do qual, no entanto, extraio uma concreta mensagem.

- O contágio que eu estendi e prolonguei, matou setenta milhões de pessoas; agrava meu pecado a enorme dimensão da tragédia ocasionada?

- Você foi instrumento das leis naturais em vigor, tira e afrouxa que procura equilíbrio e melhora tudo o existente; se não pôs intenção adicional, vingativa por exemplo, nada reprovável há na sua conduta.

Termina o preâmbulo explicativo, e no preciso instante, quando toma o sol a sua primigénia excelência luminosa, envolvido num ressonante clamor de trombetas, acção harmonizada de cem mil elementos, irrompe o Deus dos Cristãos Católicos em forma de nuvem transparente que o cheia tudo, juiz supremo de sentença inapelável.



Pedro Sevylla de Juana





Biografia
Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), a Espanha, em Março de 1946. Desejoso de resolver as incógnitas da existência, começou a ler livros aos onze anos. Para explicar suas razões, aos doze se iniciou na escritura. Viveu em Palencia, Valhadolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tânger, Paris e Ámsterdan. Publicitário, conferencista, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou dezassete livros. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro a suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

ARS LITTERARIA (16): Yes, we can!

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Um discurso considerado inconveniente


Foi com estas palavras que o Macedo, meu colega de trabalho, se despediu:
- O rapaz sai ao pai, imprudente e corajoso! Visita o seu blog e logo verás se tenho ou não razão.
Cheguei a casa e liguei a Internet para ver o referido blog.
Entre outros, no blog havia estes dizeres:
“ …agora que já passou mais dum ano desde que o meu pai morreu, divulgo a reportagem que originou o seu despedimento. Como no original desta reportagem os nomes da respectiva embaixada, embaixador e general têm um traço vermelho por cima dos seus nomes, chamar-lhes-ei simplesmente a embaixada x, o embaixador y e o general z.
Eis o texto da reportagem:

Realizou-se na passada sexta-feira uma conferência de imprensa na embaixada x, tendo o Senhor General z proferido o seguinte discurso:

“ Meus senhores,

Quando a guerra começa, parece uma fera que saiu da jaula. Ou melhor, assemelha-se mais a um carrasco a aplicar a justiça com o seu machado.
À sua passagem, a guerra tudo destrói. E essa destruição, primeiro objectivo duma guerra, inclui naturalmente os chamados danos colaterais.
Logo que todos ou quase todos os objectivos militares são alcançados, a fera recolhe à sua jaula.
Mas não se iludam meus senhores!
Mesmo depois da guerra ter acabado, quem a provocou ainda tem muitos objectivos a atingir.
Desde logo tem de pensar no que vai dizer aos jornalistas na conferência de imprensa. Há que ter a preocupação de salvar a imagem, mas aparecem sempre alguns jornalistas que só gostam de perguntar o que não devem. Essa é uma das razões que justifica que os todos os países amigos ou aliados, tenham cuidado ao atribuem carteiras profissionais a jornalistas…
Depois, temos de nos preparar para a sessão de teatro que se aproxima.
E qual será essa sessão de teatro, perguntarão os senhores jornalistas.
Pois eu vos digo:
Trata-se de justificar, perante as instâncias internacionais, a justeza da guerra que entretanto terminou. O que nem sempre é tarefa fácil!
Diz-nos porém a experiência que, se a negociação diplomática for bem feita, tudo se irá resolver a contento do país vencedor.
Tudo se irá resolver? Ilusão! Tudo não! Nunca se conseguem resolver todos os problemas porque há sempre aqueles milhares, gente anónima, que, ou ficaram sem casa, ou ficaram sem nada, ou ficaram feridos, ou ficaram estropiados. Depois da guerra, como não têm onde cair mortos, vêm-nos sempre chatear.
São precisamente esses a quem nós, eufemisticamente, chamamos os atingidos pelos chamados danos colaterais da guerra.
Mas além dessa gente, ainda nos vêm bater à porta aqueles senhores representantes da Cruz Vermelha, ou ainda outros em nome de outros Organismos, a clamar pelos direitos humanos das vítimas.
O que eles gostam é de pedir dinheiro a quem o tem.
Mas antes de nos pedirem o dinheiro já justificaram esse pedido aos quatro ventos, alegando sempre que os mortos precisam de ser enterrados, que os sobreviventes precisam de ser tratados, que as crianças e as famílias refugiadas precisam de comer todos os dias, etc, etc.
É evidente que os meios de comunicação, que precisam de rentabilizar os seus negócios, não mais nos largam. Também por isso, cada país livre deve procurar ter algum controle sobre a imprensa que tem.
Este após guerra, é, por vezes, a parte da guerra que nos traz mais chatices.
Vejo pela vossa cara, senhores jornalistas, que estão um pouco espantados com a frontalidade das minhas opiniões. Isso só demonstra que tem dificuldade em lidar com a verdade.
A guerra é também isto, meus senhores.
Subitamente o Senhor embaixador y levantou-se da mesa onde tinha estado sentado até esse momento, aproximou-se do Senhor General z e disse ao microfone o seguinte:
- Senhores jornalistas,
Ao contrário das nossas expectativas, o Senhor General z excedeu-se nos seus comentários sobre a guerra, eventualmente devido à combustão eufórica dos vapores liberto pelo excelente vinho que a todos foi servido durante este jantar.
Ao ouvir isto, o Senhor General z levantou-se e em passos rápidos abandonou a sala.
O Senhor embaixador continuou:
- Apelo à descrição e ao profissionalismo dos senhores jornalistas presentes sobre a maneira como devem relatar o que agora aqui se passou.
Desejo também que o jantar tenha sido do vosso agrado e muito boas-noites a todos.”
Sem mais, o jantar terminou e não houve mais nenhum discurso.”
Assim terminava a última reportagem que o meu pai escreveu.
Sei que esta reportagem nunca chegou a ser publicada. Foi por causa dela que o meu pai foi despedido.
Quero declarar a toda a gente que o meu pai era o melhor pai do mundo e que a sua morte se deveu ao desgosto provocado pelo injusto despedimento de que foi vítima.
Em sua homenagem dedico-lhe este meu poema:

Um dia no mundo,
Não mais se ouvirão histórias tristes
De guerras, injustiças e misérias,
Nem se ouvirá alguém dizer
Que para vencer na vida
Teve de espezinhar tudo e todos,
Que para ter os privilégios que tem,
Estão a ser sacrificados outros povos e o próprio povo.
Um dia no mundo
Não mais se imaginará o Paraíso no céu,
Mas saberemos construí-lo na própria Terra,
Nem aceitaremos com resignação
Mentiras cobertas por propagandas tendenciosas.
Um dia,
A consciência de cada um
Será formada por válidos princípios
E todos os habitantes do mundo
Serão considerados seres humanos,
Amados e respeitados em toda a parte.
Um dia,
O mundo será um hino de alegria
E no mundo,
Todos saberão a razão porque cantam.
Um dia o mundo,
Será Amor.

Francisco José Lampreia



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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

ARS LITTERARIA (15): Ano Novo, Conto novo! Centauros de Pedro Sevylla de Juana


O escritor espanhol, Pedro Sevylla de Juana teve a generosidade de nos oferecer um sugestivo conto-fábula, que aqui fica para deleite de todos os leitores de Ars Litteraria.

Centaurus (2009) / David Zink (design after a classic statue)


Dos centauros e seus modos


À Judith, Óscar e Sérgio,
infantes que já distinguem aos centauros dos homens



Se ignora o carácter da cópula, assim como o tempo que necessitou para frutificar. Mas um frio domingo do mês de Março correspondente ao ano 2009, prodígio do novo milénio, no lugar do globo chamado Villazalama, terra de abundantes pastos situada entre Valdepero e Husillos, começaram à nascer cavalos com tronco humano, braços e cabeça de homem ou, visto de outro modo, homens com lombo, rabo e patas de cavalo. A combinação genética tinha logrado uma espécie nova: os centauros, realidade superadora da fantasia humana que os criou, aqueles filhos de Ixión e da nuvem Néfele, Hera fingida. Sua presença deu pé à perguntas carentes de resposta lógica. Animais ou pessoas: a dúvida inundou as ruas, chegou nas escrivaninhas das universidades, aos claustros de professores; e dali ao intelecto dos filósofos. As leis vigentes resultaram inúteis para regular a convivência do novo e o velho; mero papel molhado e tinta atenuada. Desde os púlpitos os belicosos sacerdotes lançaram anátemas que se ouviam nos cenáculos dos governantes. Os parlamentos trataram o assunto em sessões esgotantes, e acabaram aprovando a elaboração do pão de cevada e a venda de alfafa nas quitandas. Apareceram no mercado gabão-xairel antes inimagináveis, e os negócios de construção e equipamento enriqueceram os ousados.


O homem seguiu o caminho aberto, e seu natural abusivo quis confinar aos quadrúpedes racionais. Não pôde. Asas brotaram aos de maior alçada, aos mais ágeis. Não eram grande coisa; dois apêndices lombares emplumados que lhes permitiam elevar-se pelo ares e desaparecer. Aos seis meses se demonstraram transitórios; ainda assim, durante o meio ano que durava a metamorfose, os centauros se expandiam formando novas colónias. De modo que a espécie recém-nascida se distribuiu pelos quatro pontos cardeais povoando a terra. Os monstros nasciam domados e nada acrescentou o homem nesse sentido. A cabeça humana regia seus actos de besta, humanando as consequências; e a nobreza da besta parecia neutralizar os sentimentos egoístas do homem. De maneira que os novos indivíduos exibiam condutas íntegras acrescentadas a extraordinárias faculdades. Temores e acusações iam perdendo intensidade, até que a rotina quis retornar ao seu. Púlpitos, tribunas e outros palanques reticentes acabaram tolerando aos mestiços. Se adaptaram os usos e as ferramentas às necessidades anatómicas dos híbridos, e em pouco tempo aos novos seres lhes resultou desnecessário demonstrar uma superioridade evidente. Foram penetrando nas formações castrenses, na representação social e na judicatura. Em breve ocuparam postos de relevo nas empresas e nos ministérios; e ajudando os uns aos outros, até os pior dotados alcançaram bom acomodo.


Transcorridos cinquenta anos, os centauros dominavam as variadas pirâmides do poder, e puderam abandonar a dissimulação herdada das pessoas. A raça humana, afastada dos centros de decisão, se viu confinada no ambiente dos trabalhos manuais repetitivos, levando a cabo tarefas sujas ou tediosas.


Pelos meus conhecimentos da antiga cultura, fui um dos destinados a apurar os velhos livros impressos sobre papel, única fonte de sabedoria permitida às pessoas, a que nos está vedado o ingente acervo electrónico. Devia censurar qualquer assomo, por subtil que fora, dos chamados valores humanistas. Antigos impressores, também forçados, editavam novos livros imitando a estampa dos velhos. Os leitores humanos iam abandonando as reivindicações de espécie.


Eu conduzia uma conspiração calada, e para servir aos propósitos rebeldes, todos os livros corrigidos por mim escondem estas linhas em extensos parágrafos insubstanciais.


Os centauros, receosos e inteligentes, descobriram meu ardil. As leis castigam com a morte aos traidores; amanhã dar-me-ão coices em círculo.


Pedro Sevylla de Juana




Biografia

Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), a Espanha, em Março de 1946. Desejoso de resolver as incógnitas da existência, começou a ler livros aos onze anos. Para explicar suas razões, aos doze iniciou-se na escrita. Viveu em Palencia, Valhadolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tânger, Paris e Amsterdão. Publicitário, conferencista, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou dezassete livros. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro a suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever.



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