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sábado, 28 de março de 2009

ARS LITTERARIA (17): Apocalipsis - novo (en)CONT(r)O da alegoria

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A respeito do juízo final



- Prometeram os diferentes deuses a fiéis e infiéis um exame imparcial no final dos tempos, e um veredicto concludente. O prémio ou castigo eternos seriam as ineludíveis consequências. Pois bem, para os habitantes passados e presentes de todos os planetas e galáxias do Universo, chegou essa hora.

Assim inicia seu parlamento o porta-voz escolhido em Castela e Leão pelo Deus dos Cristãos Católicos. De boa figura, ergue-se na saliência que representa Valdepero respeito à Terra de Campos, a vasta planura desprovida de árvores que contém parte das províncias de Palencia, Leão, Zamora e Valhadolid, onde escuta o auditório. Chega a sua metade o dezasseis de março, e a cúpula celeste aparece sombria, mal iluminada por um sol lívido.

- Quis Nosso Senhor reuni-los neste lugar, idóneo para acolher tal aglomeração, porque o ponto onde levanta-se o estrado pertence já a O Cerrato, geografia semelhante ao Vale de Josafat referido nos livros sagrados. Naquele espaço rendem suas contas os judeus, congregados em torno de Yaveh.

Cala a voz, e dez mil trombeteiros a reforçam com uma rajada musical ao mesmo tempo inquietante e tranquilizadora. Um gesto enérgico, quase militar, do emissário, os emudece.

- Nosso Senhor julgará a cada indivíduo separadamente, mas, isso sim, o conjunto declarará de maneira simultânea. Os julgados exercerão sua própria defesa, sendo, também, acusadores de si mesmos. Capazes de ter emoções e sentimentos, para sofrer idêntico exame, se somam os animais que lhes acompanharam. Se alguém tem dúvidas, agora pode resolvê-las, porque uma vez iniciada a cerimónia tudo transcorrerá mentalmente.

Isso diz o mensageiro, e espera um instante por se alguém dentre o público faz o gesto inquiridor.

- Fale, senhor Sebastián, vigésimo pároco de Villalpando; qual é sua dúvida?

- Entendo que vai julgar-se às consciências e às vontades, é assim?

- Assim é, a diferença existente entre o que achavam uma actuação justa e o comportamento efectivo, estabelecerá a cota de mérito atingida. Esse exame farão no interior de seus corações os questionados, e Nosso Senhor o conhecerá num instante.

- Diga você, Zopenco, asno servidor do primeiro prefeito de Bolaños, qual é sua dúvida?

Ouço um zurro claro, rotundo, quase inteligível, apesar da enorme distância que me separa de onde encontra-se a besta. E ao momento escuto a palavra do porta-voz, entendida por todos os presentes, vaga-lumes e cigarras inclusive.

- A obediência devida, como você a chama, é comum a todas as espécies, incluída a humana; e exime se lutou-se com toda energia contra ela na defesa dos próprios convencimentos.

- É seu turno, formiga sem nome, habitante do termo de Sahagún, entre os rios Cea e Valderaduey em fim do século dois antes de Cristo; qual é sua dúvida?

Ouço um sussurro reiterado e a entoação revela juventude, adolescência talvez, infância ingénua e confiante.

- Quem foram alimento de outros ao princípio da existência, carecendo de tempo para decidir pelo seu cálculo de maneira responsável, e quem nasceram mortos ou faleceram antes de nascer, receberão outra oportunidade. Uma vida nova lhes espera, independente da anterior, sem conexão alguma com ela. Vão ser o princípio de outro ensaio divino, que partirá do progresso conseguido no qual agora conclui.

- Pergunte, vírus do tipo A(N1H1), participante na epidemia de gripe de 1918; qual é sua dúvida?
Sinto um silencioso estremecimento do qual, no entanto, extraio uma concreta mensagem.

- O contágio que eu estendi e prolonguei, matou setenta milhões de pessoas; agrava meu pecado a enorme dimensão da tragédia ocasionada?

- Você foi instrumento das leis naturais em vigor, tira e afrouxa que procura equilíbrio e melhora tudo o existente; se não pôs intenção adicional, vingativa por exemplo, nada reprovável há na sua conduta.

Termina o preâmbulo explicativo, e no preciso instante, quando toma o sol a sua primigénia excelência luminosa, envolvido num ressonante clamor de trombetas, acção harmonizada de cem mil elementos, irrompe o Deus dos Cristãos Católicos em forma de nuvem transparente que o cheia tudo, juiz supremo de sentença inapelável.



Pedro Sevylla de Juana





Biografia
Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), a Espanha, em Março de 1946. Desejoso de resolver as incógnitas da existência, começou a ler livros aos onze anos. Para explicar suas razões, aos doze se iniciou na escritura. Viveu em Palencia, Valhadolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tânger, Paris e Ámsterdan. Publicitário, conferencista, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou dezassete livros. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro a suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever.

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