ARS LITTERARIA revê-se no projecto ARS INTEGRATA e é parte integrante do mesmo. É um espaço de livre-pensamento e de debate de ideias, não possuindo vinculação a correntes estéticas particulares, nem filiação clubística, político-partidária, ou de cariz confessional, pelo que não assume qualquer comprometimento com os textos e opiniões expressas no seu blog como naqueles que divulga.
Contamos com a vossa colaboração. Para mais informação ver abaixo ou escreva para: arslitteraria@gmail.com

-

domingo, 26 de dezembro de 2010

ARS LITTERARIA (30): A visita do Menino, segundo Rui Zink

-
The enlightened boy (2010) / DZ


A visita do menino

Todos os anos neste dia acontece o mesmo. A visita do miúdo. É assim desde há uns cinco ou seis anos, não sei porquê. Quis saber, agora já não quero. Apenas aceito e agradeço mentalmente a dádiva concedida. A minha mulher diz que estou a ficar xexé. Eu discordo. Há coisas que uma pessoa sabe que são verdade mesmo com provas em contrário. Os factos não têm sempre razão. Se tivessem sempre razão seriam razoáveis. Não são. Quase nunca são, pois não?

O miúdo chega de manhã, ainda estamos na cama. Toca à campainha com insistência, a minha mulher irrita-se: “Quem será a esta hora? Não sabem que hoje ao menos uma pessoa tem direito a dormir mais um bocado?” Mas eu, já prevenido, vou de mansinho abrir a porta. E não é que o malandro do miúdo me prega sempre a mesma esparrela? Olho para a frente quando devia era olhar para baixo. Antes que eu dê por isso já ele se esgueirou e, com todo o desplante, dou com ele todo repimpado no sofá. Da primeira vez tive um sobressalto. Agora já me habituei e só se ele não aparecesse é que ficaria desapontado.

Estão a ouvir a campainha? Aí vem ele. A minha mulher resmunga: “Ó homem, para que é que te estás a levantar? Fica mas é sossegado.” Sossegado, uma ova. Às vezes esta mulher tira-me do sério. Sossegado? Terei muito tempo para estar sossegado quando estiver morto.

Abro a porta e ele entra. Parece mais novo que o ano passado. É natural. Já o ano passado parecia mais novo que no ano anterior. O mesmo ritual: esgueira-se-me por baixo do braço, como um grilo, e senta-se no sofá. Acende a televisão com o comando, inspecciona os canais: os desenhos animados, as notícias, a vida selvagem, o futebol, as séries, os concursos. A seguir desliga: “Eu já sabia, não dá nada de jeito. Para que servem tantos canais se não há nada de jeito, pá?

Da primeira vez protestei a sua monumental lata, e estranhei que ele ficasse mais tempo a ver as notícias que os desenhos animados. Afinal, um miúdo é um miúdo. Só que este miúdo sabe-a toda.

Isto está mau, pá. Já pensaste em quem vais votar? Ou és daqueles que já nem votam?

As crianças têm bicho-carpinteiro e cansam-se facilmente. Este menino passa rapidamente da política a assuntos mais sérios: “Queres jogar umas damas?

Da primeira vez que ele apareceu, não pudemos jogar. O que posso dizer? Desde pequeno que eu não jogava damas! E no entanto era uma das minhas melhores recordações de infância, jogar às damas com o meu pai. Mas agora já estou prevenido. E vou buscar o tabuleiro.

Após um par de partidas (que me deixa ganhar) ele faz um ar cúmplice:
Ouve lá, pá, não tens nada que se beba?

Hoje, também sei ser matreiro, surpreendo-o: digo que sim e dou-lhe um copo de sumo. Ele torce o nariz: “Eu disse uma coisa que se beba, pá.

Sorrio e lá desencanto uma garrafa, já aberta, de tinto alentejano. Não dos mais caros, mas Portugal tem isso de bom: com ou sem crise, há sempre vinho de qualidade a preços acessíveis. Ou não fôssemos nós a terra do sol grátis, do clima ameno, dos solos férteis. Até ver, claro. Mas tudo na vida é até ver. Depois, quando já não houver nada para ver, despedimo-nos. Como eu e o menino.

Ele leva com gosto o copo aos lábios. Sei muito bem que não se deve dar vinho às crianças. Só que este miúdo é especial. Nos últimos tempos, ele já não podia beber. A minha mulher era a mais severa: “Não lhe dês vinho, o médico proibiu-o terminantemente.” Eu ainda lhe passava um ou outro copo às escondidas, até que a tarefa clandestina se tornou impossível.

Ele devolve-me o copo e, nesse momento, os nossos dedos tocam-se. É bom. Uma pessoa poderia pensar que os dedos dele é que estariam frios. Não. Estão quentes. Os meus é que estão frios, o que é normal, agora sou eu quem tem problemas de circulação. Ele? Ele é um miúdo.

Tens tomado conta de ti, pá?”, pergunta. “Tens andado a pé? Olha que é importante andares a pé. É a melhor ginástica, pá.
Eu sorrio. Um miúdo a dar-me conselhos. Mas, claro, ele não é apenas um miúdo.

Da primeira vez não o reconheci. Como podia? Nunca tinha visto fotos dele em criança. E depois de perceber que ele não era uma ilusão, que era real, ainda perguntei: “É-és Jesus?”
Ele riu: “Achas-me com cara de treinador do Benfica, pá?

Na altura não percebi a piada, porque o treinador do Benfica ainda não tinha esse nome. Imaginem o meu baque quando a premonição se tornou realidade. (O meu baque este ano é pior: aquilo este ano nem com Jesus vai ao sítio.)

O meu pai era da geração do pá, pá para ali, pá para acolá. Todo o século passado português está contido nessa palavra que nem palavra é: pá. Dizem que é diminutivo (ou melhor, encolhitivo) de “rapaz”. Não sei. Pode também ser uma variante de Pã, o bom traquinas.

Por que me aparece o meu pai, precisamente neste dia, em formato menino e não adulto? Levei tempo, mas percebi. Acho que percebi. Afinal de contas, como deveria ele aparecer-me? Qual a idade certa para um pai voltar a visitar-nos uma vez por ano, antes que a família (primos, sobrinhos, netos) entre em balbúrdia por causa do almoço de Natal?

As nossas conversas nunca duram muito, como já não duravam muito enquanto ele estava vivo. Quanto muito, está menos chato. Mas suponho que é isso que acontece com a idade. Eu também estou mais chato agora do que antigamente.
Sei que não fui um grande pai, pá.
“Não foi dos piores.”
Vou tomar isso como um elogio, pá.
“Porque nos deixou?”

O menino meu pai fica sério: “Ó pá, eu não… O que te posso dizer? A vida é curta e quase mal sobra tempo para fazer asneiras, quanto mais as coisas certas.
“Agora perdeu-me.”
Estou a tentar dizer uma piada, pá.
“Sabe que nunca gostei muito das suas piadas?”
Tu é que nunca tiveste grande sentido de humor.
Ficamos a olhar um para o outro, até que ele diz:
Era uma piada, pá. Tu para meu filho nem te safaste mal.

Sorrimos. Eu, o adulto, ele, o garoto. Olha para as horas no relógio de pulso. Que ele não tenha um relógio no pulso é pormenor sem importância.
Bom, tenho de ir. Cuida-te, pá.
“Tu também, pai. Obrigado pela visita.”

Ele abre a porta e, antes de a fechar, piscando-me o olho, carrega no botão da campainha. De propósito, só para sarrazinar a minha mulher. Acho que ainda não lhe perdoou ter-se posto do lado dos médicos quanto à proibição do beber um copito.

Calculo o tempo que leva ao menino a descer as escadas. E, certo como um carteiro, lá vem novo toque à campainha, desta vez mais estridente e contínuo, mesmo só para chatear.

A minha mulher entra na sala, esgrouviada:
Que barulho foi esse? Quem tocou agora à campainha?
“Nada”, digo. “Deve ter sido algum miúdo.”

Rui Zink
in: Jornal de Notícias
(25 de Dezembro de 2010)
-

Sem comentários: