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domingo, 4 de julho de 2010

ARS LITTERARIA (25): Rui Zink escreve sobre Luisão

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Mote e Rima:

«COM LUISÃO, BENFICA CAMPEÃO!»

A propósito do grande tema do momento - a vitória do Benfica no Campeonato Nacional de Futebol (que se lixe a crise, o maior dos clubes portugueses e porventura um dos maiores clubes do mundo em número de adeptos, acabou de dar uma grande alegria a todos estes) - o Diário de Notícias entendeu publicar uma revista especial comemorativa do acontecimento, e, por feliz ideia, convidou vários escritores para deporem sobre os jogadores da equipa vitoriosa, como que a provar que a intelectualidade lusitana não é alheia ao chamado desporto-rei, e que este é perfeitamente capaz de inspirar grandes momentos de criatividade para além das jogadas em campo.

Ars Litteraria, que não vai em "futebóis" enquanto forma de alienação colectiva mas reconhece a beleza do desporto, esteve atento e pediu ao escritor Rui Zink que nos cedesse o seu belo texto sobre o jogador que glosou: o Grande Luisão.

Ei-lo aqui (e é claro, segue o nosso conselho para que corram às bancas para adquirir uma revista que - despidos os preconceitos - ficará nos anais da história da literatura em Portugal (tal como a fabulosa "Sinfonia Benfica" do compositor António Vitorino de Almeida, a qual sendo - inequivocamente - uma das melhores obras sinfónicas de sempre produzidas por compositores portugueses -, por estranho que pareça não está à venda na loja do clube).


Lui-Zão [2010] / (re)designed by DZ


LUISÃO
: uma girafa humana diferente de Charles de Gaulle
/ por Rui Zink


Falam, não falham, as estatísticas: Luísão apenas falhou, este ano, os jogos que não o deixaram jogar. Falou, Luisão! Ao longo de toda a época, foi “uma das três peças firmes” na sacrificada equipa do Benfica. Confere respeito. Mas não é só pela sua arte e fiabilidade que se mede Luisão. É também por algo que podemos ver em campo e que não podemos ver mas também sabemos existir no balneário: carisma. O carisma não é fácil de conseguir: uns têm, outros não têm. É natural, mas dá trabalho. Tê-lo é apenas o princípio das coisas. Saber formatá-lo é a sequência que nem todos conseguem.

É a diferença entre ter autoridade e ser autoritário, entre firmar uma posição e perder o pé. Quando, na primeira mão com o Liverpool (a única de que me lembro), Luisão leva com a mão malandra de Babel na cara (uma provocaçãozinha que, no calor do momento, geralmente resulta), o tiro saiu pela culatra e foi o jogador inglês que levou guia de marcha. Toda a experiência, ciência, presença de Luisão estava ali. Ele nem precisou de pensar, para pensar a coisa certa: “Esquenta não, moleque, cabeça fria, cabeça fria.” É por estas fico sem entender quando na Selecção vejo fedelhos imaturos com a braçadeira de capitão. Porque Capitão, para mim, é Luisão. Como há quarenta anos o era Mário Coluna.

O girafa humana original era o general De Gaulle, um homem tão monumentoso e autocentrado que sobre ele ainda se conta que, um dia, a esposa entrou no quarto estava ele nu e exclamou: "Oh, Mon Dieu!" Ao que De Gaulle respondeu: “Querida, sabes que entre nós podes chamar-me Charles.” Luisão nunca proporcionaria uma piada destas, porque é outro tipo de girafa humana. Não se acha o maior, apenas sabe que tem de ajudar a equipa a jogar o melhor que as circunstâncias permitem. Geralmente consideramos que o verdadeiro artista é o jogador de ataque e o defesa está lá apenas para “obstaculizar”. Não é bem assim: avançado e defesa de equipas contrárias são rivais mas, também, parceiros de dança, como Liedson e Luisão, verde e vermelho, são adversários e amigos. O defesa não está lá para impedir o avançado de brilhar, mas para lhe dificultar a vida. Ou seja, para o ajudar a brilhar. Porque no dificultar a vida é que está o ganho. Sem grandes defesas, não haveria grandes avançados. Luisão é por vezes batido? Claro que sim. Mas ele vai obrigar o avançado contrário a esforçar-se, a dar o seu melhor. Mais do que patrão da defesa ou capitão da equipa, ele é o padrão pelo qual todos os jogadores se deviam medir: mais alto, mais forte, mais sereno. Imagino-o no balneário a motivar os colegas: “Gente, hoje até podemos perder, mas eles vão ter de dar o seu melhor para o fazer.”

Houve muitos momentos memoráveis neste campeonato. É a prova mais nobre, porque é a mais longa. Todas as equipas jogam duas vezes com todas as outras equipas. É o teste que menos depende da sorte de um dia bom, ao contrário da Taça, que também tem o seu encanto, mas se assemelha mais a uma lotaria. Pois para mim, o momento decisivo deste Campeonato Nacional (ainda não me habituei, acho que nunca me habituarei, a chamar-lhe Liga Cergal) foi precisamente o último jogo com o Nacional, na Madeira. A equipa estava cansada, havia nevoeiro, a tragédia recente fazia com que o jogo fosse mais emocional que de costume, o Benfica estava a dominar, mas sem pontaria. Tudo apontava para uma derrota, pois um empate é uma derrota desde que, em boa hora, os americanos inventaram a vitória por três pontos. Eis senão quando, qual Liedson, Luisão resolve. Foi ali que eu murmurei para quem, na tasca do Rafael e da Cristina, me queria ouvir: “Acho que foi aqui que o Benfica ganhou o campeonato.” Podia tê-lo perdido ali. Não perdeu. Luisão resolveu.

Por que motivo puxo por duas vezes (três, agora com esta frase) pelo nome de Liedson? Porque li algures que os dois fora do campo são amigos e desejam o melhor para a carreira do outro. E encanta-me que, precisamente, nos derbies eles sejam não só rivais, por causa das equipas, mas parceiros mesmo num duelo que se arrasta e promete continuar no próximo ano lectivo. No boxe este tipo de amizade não é incomum: o sul-africano Botha e o afro-americano Holyfield comeram um bife juntos dias antes de se massacrarem no ringue. Talvez por ser mesmo um jogo de homens, e não de rapazes, o boxe tem poucos ódios que passam para lá das cordas. Já no futebol português não parece ser assim. O rancor dura e dura e dura… Apagada e vil tristeza, diria Camões, se fosse fã de futebol. E, se fosse fã, talvez até fizesse um soneto a Luisão. Algo como:

Transforma-se o amador na coisa amada
Por virtude do muito imaginar
Luisão, tu até com a bola parada
Sabes que o jogo é muito mais que ganhar.

Contigo a partida fica mais calibrada
E se Saviola, Di Maria, Cardoso, Aimar
Pura e límpida arte são, a atacar
Tu não menos arte és – à retaguarda.

Pois no jogo que é vida, sorte e drama
Patrão és da defesa, da equipa Capitão
E defesa que ataca – e faz xeque à dama.

Tu todo águia és, em alma e coração
Não, não és só o nosso Girafa Humana
És também o firme, o bom, o leal Luisão.
Rui Zink
in: Benfica, o renascer do culto. Diário de Notícias, Maio 2010, ISSN 0870-1954, pp. 38-39


Sinfonia n. 1, op. 21 «Benfica»
, de António Vitorino de Almeida (1940-)
(excerto)
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