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sábado, 4 de fevereiro de 2012

ARS LITTERARIA (34): As cruzadas vistas pelos árabes


AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES / AMIN MAALOUF




Numa era em que o maniqueísmo ainda prolifera como arma de arremesso político e religioso - e o que é mais grave, ainda se pretende alimentar um "espírito de cruzada" como forma de exercício do poder poder -, são benvindos todos os contributos que possam desfazer mitos e ajudar ao conhecimento dos dois lados da questão numa perspectiva expurgada de preconceitos, que reponha tanto quanto possível a "verdade histórica". Acima de tudo, porque numa guerra, independentemente da maior ou menor justeza das causas, nunca há apenas maus de um lado e bons do outro, sendo que os povos são sempre os grandes sofredores nos conflitos bélicos, além da destruição não raro criminosa do património. Ora, a Paz só pode ser almejada quando houver uma plena compreensão deste mesmo facto.

Amin Maalouf, escritor franco-libanês, membro da Academia Francesa, dando-nos conta da perpspectiva árabe das "cruzadas" numa escrita modelar que funde elementos ficcionais com o resumo de documentos coevos,  procura fazer luz sobre um período marcante da História da Humanidade com consequências que ainda hoje estão presentes, e até em claro recrudescimento. Só por si, isso seria motivo bastante para a sua leitura, porquanto nos vem fazer luz sobre a noção inculcada nos bancos da escola por professores "primários" (na verdadeira acepção do termo), mostrando-nos com fundamento documental uma outra visão das coisas, que nos leva a reflectir e a suscitar uma curiosidade que nos conduza a aprofundar os problemas e, consequentemente, a novas aprendizagens.

Com efeito, o que nos distingue da animalidade em geral, é a nossa capacidade de escrita que conduz à aprendizagem para lá da nossa própria e limitada vivência, e com ela não apenas ao registo de uma memória colectiva, mas, o que é mais importante, ao desenvolvimento da ciência.

Acresce que Maalouf constrói a sua narrativa com inegável qualidade literária, o que faz do seu livro não apenas um objecto de ilustração dos saberes, mas também nos oferece a dimensão do prazer da leitura, numa escrita dinâmica e empolgante, mas sem intuitos manipuladores, antes dando a conhecer a natureza humana dos decisores político-militares nas suas inquietudes e e fraquezas, assim como as consequências dos seus actos. Deste modo, este livro para lá do seu interesse na categoria do romance histórico, afigura-se-nos também com um importante contributo para a Paz.


MAALOUF, Amin - As cruzadas vistas pelos árabes. Trad.de G. Cascais Franco, 12.ª ed., Miraflores: Difel, 2003

sábado, 24 de dezembro de 2011

ARS LITTERARIA (33): O presente de Natal de Rui Zink

Illuminatus angelorum capella / David Zink fecit MMXI


Não dê…

Neste Natal
Não dê dinheiro a um pobre
Habitua-o mal
Não dê comida a um pobre
Habitua-o mal
Não dê de beber a um pobre
Ele vai gastar tudo em vinho
Não dê guarida a um pobre
Ele gosta é mesmo de chão
Não dê livros a um pobre
Ele queima-os para se aquecer
Não dê carinho a um pobre
Ele estranha e fica nervoso
Não diga bom dia a um pobre
Dá-lhe falsas esperanças
Não dê saúde a um pobre
É uma despesa inútil
Se quer mesmo dar-lhe alguma coisa
[porque enfim está no espírito de natal
e você é uma alma piedosa]

Dê-lhe porrada.
Vai ver que ele gosta
É ao que ele está habituado
E os pobres já sabemos como é
os pobres (coitados) não são muito de mudança não.


Rui Zink
In: JL : jornal de letras, artes e ideias, Ano XXI, n.º 1075 (2011-12-14 a 27), “Contos de Natal”, 11
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domingo, 16 de outubro de 2011

ARS LITTERARIA (32): Júlia Lello, Os Vivos e os Mortos




Entre “OS VIVOS E OS MORTOS”, alguém há-de...



Com a publicação de “Os vivos e os mortos”, o seu mais recente livro, Júlia Lello traz-nos uma mão cheia de poemas arrumados em duas secções opostas que poderiam até preencher duas edições distintas – O «Livro dos Mortos» e o «Livro dos Vivos» –, ainda que vida e morte façam parte da “vida”, e talvez por isso a autora tenha querido marcar essa indissociabilidade publicando-os no mesmo volume.

Temos assim dois registos - negro e claro -, duas tonalidades - menor e maior -, ainda que nem a morte seja sempre triste nem a vida constantemente alegre. Nos funerais de New Orleans (onde nasceu o jazz), costumava-se tocar a marcha fúnebre (da Sonata em si menor, op. 35, de Chopin) no cortejo até ao cemitério, mas o regresso fazia-se em clima de festa, jazzístico e alegre, ao som de temas como o “Free as a bird", pois celebrava-se a ida para o “céu”, e a libertação do falecido da vida dura de “escravo”, finalmente livre como um pássaro. A noite pode ser luminosa (como se vê, por ordem cronológica, nos nocturnos de Michael Haydn, de John Field ou de Frédéric Chopin), ainda que banhada por luz indirecta do Sol, tendo a Lua por mensageira.

Por outro lado, denota-se na primeiro capítulo um tom mais intimista e (auto)biográfico, com os factos da vida real a determinar uma reflexão sobre a vida efémera (“é para onde vamos”, sublinha a autora em jeito de complemento de título). Mais do que uma incursão no “mundo dos mortos” e na especulação dos seus mistérios, é a “saudade” sensível relativamente aos que partiram, mas também a interrogação fundamental sobre se vale a pena continuar a viver esta vida: “Não sei se foi bom ficar viva / Não sei se era melhor morrer” (é o mote da “Balada da mulher viúva”), enfim ceder já à morte que a vida nos destina, ou meramente adiá-la, eis a questão.

Já o segundo capítulo é dominado pela crítica do sistema em que somos levados a viver, com a fina ironia que a poetisa nos habituou nos seus livros anteriores, onde sobressai a crítica ao sistema de ensino” no "Poema didáctico-Pedagógico” (ou não fosse a autora também professora), o combate à tradição da “violência sobre as mulheres”, mas também a valoração metafísica dos “pequenos nadas” da vida quotidiana (num modo algo surrealizante que nos faz lembrar o saudoso José Gomes Ferreira).

Mas no seu conjunto, “Os vivos e os mortos”, um título-paráfrase de “Os nus e os mortos”, de Norman Mailer (quiçá como homenagem a esse vulto maior da contracultura norteamericana), (res)suscita o problema magno da nossa existência:

Haverá outro sentido para a vida, além da morte? – Sim, a poesia que teima em resistir à morte física dos poetas aí está para o provar. E Júlia Lello com a sua arte poética a suscitar a inquietude é, indubitavelmente, um desses seres raros que nos fornece pistas nesse sentido.


Ars Litteraria


LELLO, Júlia – Os Vivos e os Mortos. Il. Maria José Brito, [Lisboa: ed.aut., 2011] (Digital XXI), D.L. 330364/11, 48 p.



link:
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http://arspoetica2u.blogspot.com/

domingo, 25 de setembro de 2011

ARS LITTERARIA (31): Mozart par Christian Jacq


Mozart 4 Enigma [2011] / (re)designed by David Zink


JACQ, Christian – Mozart. – 4 vols., [S.l.]: Bertrand, 2006-2007
– 1.º vol: O supremo mago. – ISBN: 9789722514750
– 2.º vol: O filho da luz. – ISBN: 9789722514835
– 3.º vol: O irmão do fogo. – ISBN: 9789722515221
– 4.º vol: O amado de Ísis. – ISBN: 9789722515429



Ars litteraria, recomenda esta excelente obra nas categorias do romance histórico e da biografia como género literário, porquanto nos revela o génio de W. A. Mozart (1756-1791) nas suas várias dimensões (a do grande compositor, mas também a do "menino prodígio" que se fez homem dotado de grandes virtudes e algumas fraquezas) e à luz da vertente que muitos ignoram (pelo menos em toda a suas implicações), a de maçon entusiasta e dedicado e do modo como isso se revelou decisivo na sua obra e na sua vida

O autor desta biografia, monumental mas de fácil leitura, pretende dar a conhecer ao leitor comum, numa escrita viva e apaixonante, uma visão sustentada sobre a personalidade e acontecimentos que rodearam a vida do genial compositor. Acresce que este escritor expõe uma tese "conspirativa" e porventura polémica mas com fundamentação bastante sobre as causas da morte precoce deste "filho da luz" (que obviamente nada tem a ver com a personagem central do filme fantasista Amadeus, de Milos Forman: ainda que a profundidade das suas composições não bastasse, bastaria ler as cartas de Wolfgang Amadeuz dirigidas ao seu pai, o compositor Leopold Mozart, para perceber que ele nada tinha de pateta, ainda que, como muitos de nós, gostasse de praticar o humor brejeiro como ressalta da correspondência com a sua prima Maria Anna Thekla, carinhosamente "Bäsle").

Ora, Christian Jacq, um maçon (tal como Mozart) que é também um prestigiado membro da Academia Francesa e um dos mais destacados egiptólogos, autor de inúmeros livros de divulgação sobre este e outros temas, não pretendeu usar a figura de Mozart para criar um mero texto lúdico ficcional, bem pelo contrário ainda que utilizando como meio de exposição o romance – arte na qual já provou os seus créditos –, apoia-se numa aprofundada investigação solidamente apoiada em documentos coevos.

Claro que a invulgar extensão desta biografia pode demover a priori o público em geral, mesmo os melómanos e literatos mais empenhados, porém asseguramos que os quatro volumes que a compõem lêem-se num apíce, por força da forma narrativa empolgante e da escrita límpida do autor. Assim, o único motivo de “susto” para o leitor só poderá ser o preço da totalidade da obra, mas para esse caso há sempre a excelente solução de recurso às bibliotecas públicas.

4 hands Mozart

Piano Sonata in D major, 4-hands, K. 381 / Daniel Barenboim & Lang Lang

&


Piano Sonata in C major, 4-hands, K. 521 / Martha Argerich & Eugene Kissin

4 great pianists 4 Mozart

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domingo, 26 de dezembro de 2010

ARS LITTERARIA (30): A visita do Menino, segundo Rui Zink

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The enlightened boy (2010) / DZ


A visita do menino

Todos os anos neste dia acontece o mesmo. A visita do miúdo. É assim desde há uns cinco ou seis anos, não sei porquê. Quis saber, agora já não quero. Apenas aceito e agradeço mentalmente a dádiva concedida. A minha mulher diz que estou a ficar xexé. Eu discordo. Há coisas que uma pessoa sabe que são verdade mesmo com provas em contrário. Os factos não têm sempre razão. Se tivessem sempre razão seriam razoáveis. Não são. Quase nunca são, pois não?

O miúdo chega de manhã, ainda estamos na cama. Toca à campainha com insistência, a minha mulher irrita-se: “Quem será a esta hora? Não sabem que hoje ao menos uma pessoa tem direito a dormir mais um bocado?” Mas eu, já prevenido, vou de mansinho abrir a porta. E não é que o malandro do miúdo me prega sempre a mesma esparrela? Olho para a frente quando devia era olhar para baixo. Antes que eu dê por isso já ele se esgueirou e, com todo o desplante, dou com ele todo repimpado no sofá. Da primeira vez tive um sobressalto. Agora já me habituei e só se ele não aparecesse é que ficaria desapontado.

Estão a ouvir a campainha? Aí vem ele. A minha mulher resmunga: “Ó homem, para que é que te estás a levantar? Fica mas é sossegado.” Sossegado, uma ova. Às vezes esta mulher tira-me do sério. Sossegado? Terei muito tempo para estar sossegado quando estiver morto.

Abro a porta e ele entra. Parece mais novo que o ano passado. É natural. Já o ano passado parecia mais novo que no ano anterior. O mesmo ritual: esgueira-se-me por baixo do braço, como um grilo, e senta-se no sofá. Acende a televisão com o comando, inspecciona os canais: os desenhos animados, as notícias, a vida selvagem, o futebol, as séries, os concursos. A seguir desliga: “Eu já sabia, não dá nada de jeito. Para que servem tantos canais se não há nada de jeito, pá?

Da primeira vez protestei a sua monumental lata, e estranhei que ele ficasse mais tempo a ver as notícias que os desenhos animados. Afinal, um miúdo é um miúdo. Só que este miúdo sabe-a toda.

Isto está mau, pá. Já pensaste em quem vais votar? Ou és daqueles que já nem votam?

As crianças têm bicho-carpinteiro e cansam-se facilmente. Este menino passa rapidamente da política a assuntos mais sérios: “Queres jogar umas damas?

Da primeira vez que ele apareceu, não pudemos jogar. O que posso dizer? Desde pequeno que eu não jogava damas! E no entanto era uma das minhas melhores recordações de infância, jogar às damas com o meu pai. Mas agora já estou prevenido. E vou buscar o tabuleiro.

Após um par de partidas (que me deixa ganhar) ele faz um ar cúmplice:
Ouve lá, pá, não tens nada que se beba?

Hoje, também sei ser matreiro, surpreendo-o: digo que sim e dou-lhe um copo de sumo. Ele torce o nariz: “Eu disse uma coisa que se beba, pá.

Sorrio e lá desencanto uma garrafa, já aberta, de tinto alentejano. Não dos mais caros, mas Portugal tem isso de bom: com ou sem crise, há sempre vinho de qualidade a preços acessíveis. Ou não fôssemos nós a terra do sol grátis, do clima ameno, dos solos férteis. Até ver, claro. Mas tudo na vida é até ver. Depois, quando já não houver nada para ver, despedimo-nos. Como eu e o menino.

Ele leva com gosto o copo aos lábios. Sei muito bem que não se deve dar vinho às crianças. Só que este miúdo é especial. Nos últimos tempos, ele já não podia beber. A minha mulher era a mais severa: “Não lhe dês vinho, o médico proibiu-o terminantemente.” Eu ainda lhe passava um ou outro copo às escondidas, até que a tarefa clandestina se tornou impossível.

Ele devolve-me o copo e, nesse momento, os nossos dedos tocam-se. É bom. Uma pessoa poderia pensar que os dedos dele é que estariam frios. Não. Estão quentes. Os meus é que estão frios, o que é normal, agora sou eu quem tem problemas de circulação. Ele? Ele é um miúdo.

Tens tomado conta de ti, pá?”, pergunta. “Tens andado a pé? Olha que é importante andares a pé. É a melhor ginástica, pá.
Eu sorrio. Um miúdo a dar-me conselhos. Mas, claro, ele não é apenas um miúdo.

Da primeira vez não o reconheci. Como podia? Nunca tinha visto fotos dele em criança. E depois de perceber que ele não era uma ilusão, que era real, ainda perguntei: “É-és Jesus?”
Ele riu: “Achas-me com cara de treinador do Benfica, pá?

Na altura não percebi a piada, porque o treinador do Benfica ainda não tinha esse nome. Imaginem o meu baque quando a premonição se tornou realidade. (O meu baque este ano é pior: aquilo este ano nem com Jesus vai ao sítio.)

O meu pai era da geração do pá, pá para ali, pá para acolá. Todo o século passado português está contido nessa palavra que nem palavra é: pá. Dizem que é diminutivo (ou melhor, encolhitivo) de “rapaz”. Não sei. Pode também ser uma variante de Pã, o bom traquinas.

Por que me aparece o meu pai, precisamente neste dia, em formato menino e não adulto? Levei tempo, mas percebi. Acho que percebi. Afinal de contas, como deveria ele aparecer-me? Qual a idade certa para um pai voltar a visitar-nos uma vez por ano, antes que a família (primos, sobrinhos, netos) entre em balbúrdia por causa do almoço de Natal?

As nossas conversas nunca duram muito, como já não duravam muito enquanto ele estava vivo. Quanto muito, está menos chato. Mas suponho que é isso que acontece com a idade. Eu também estou mais chato agora do que antigamente.
Sei que não fui um grande pai, pá.
“Não foi dos piores.”
Vou tomar isso como um elogio, pá.
“Porque nos deixou?”

O menino meu pai fica sério: “Ó pá, eu não… O que te posso dizer? A vida é curta e quase mal sobra tempo para fazer asneiras, quanto mais as coisas certas.
“Agora perdeu-me.”
Estou a tentar dizer uma piada, pá.
“Sabe que nunca gostei muito das suas piadas?”
Tu é que nunca tiveste grande sentido de humor.
Ficamos a olhar um para o outro, até que ele diz:
Era uma piada, pá. Tu para meu filho nem te safaste mal.

Sorrimos. Eu, o adulto, ele, o garoto. Olha para as horas no relógio de pulso. Que ele não tenha um relógio no pulso é pormenor sem importância.
Bom, tenho de ir. Cuida-te, pá.
“Tu também, pai. Obrigado pela visita.”

Ele abre a porta e, antes de a fechar, piscando-me o olho, carrega no botão da campainha. De propósito, só para sarrazinar a minha mulher. Acho que ainda não lhe perdoou ter-se posto do lado dos médicos quanto à proibição do beber um copito.

Calculo o tempo que leva ao menino a descer as escadas. E, certo como um carteiro, lá vem novo toque à campainha, desta vez mais estridente e contínuo, mesmo só para chatear.

A minha mulher entra na sala, esgrouviada:
Que barulho foi esse? Quem tocou agora à campainha?
“Nada”, digo. “Deve ter sido algum miúdo.”

Rui Zink
in: Jornal de Notícias
(25 de Dezembro de 2010)
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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ARS LITTERARIA (29): Um conto de Natal, por Casp

-[Illumi] Natus Philosophorum, David Zink fecit MMX

Conto de natal, ou talvez não...
Na minha meninice quando ainda não pensava nem contestava, acreditei no natal, no pai natal, na festa da família e mais outras patranhas; recordo-me que, estando hospedado num orfanato com mais duzentos clientes, num desses natais fui considerado o mais bem comportado e como paga deram-me o melhor brinquedo que se encontrava no pinheiro; eu o melhor do ano? Eu que até tinha chumbado a 4ª classe? Eu que era um demónio quando me chateavam?

Achei aquilo tão estranho que mal chegado ao Quadrado (local aonde brincávamos), cá vai disto e o saxofone foi atirado contra a parede; atrás do saxo voaram carros, carrinhos e carretas contra os muros, foi assim comemorado esse natal e os seguintes levaram o mesmo caminho, mal ali chegávamos era tudo destruído, e que ninguém tentasse ficar com o brinquedo pois era-lhe retirado à força.

Acto de selvajaria? Talvez! Mas também talvez esta coisa de nos sentirmos sós no meio de tantos também devia pesar sem o sabermos, entendamos a coisa como um escape pois nem nos sentíamos mal depois da acção.

Mais tarde descobri porque me deram o saxo.

A Tia Rosa, cozinheira, chamou-me e disse-me, tenho um filho que tem o teu nome, Carlos Alberto da Silva Pedro, também fez exame da 4.ª classe um ou dois dias depois de ti, o chumbo era para ele, mas deixa estar tu és interno, ele não e tem de ir trabalhar para me ajudar. Ela o disse ela o sabia.

Eu realmente estranhei; na véspera do exame e como preparação psicológica a regente prometeu uma carga de porrada a quem trouxesse uma raposa, e não é que ela mandando-me chamar em lugar da prometida carga me disse que para o ano seria melhor!!! Revendo o exame até me correu bem; já escrevia mais ou menos bem, era bom em redacções e ditados, em História calhou-me o Viriato e o Sertório, na Geografia safei-me com os rios que nasciam em Espanha, na Geometria os ângulos, na Gramática as preposições que disse todas, nas Ciências falei dos ossos da cabeça; a minha professora estranhou o chumbo e por isso não levei porrada e deram-me o saxo que gentilmente arrumei contra a parede, o meu instinto de criança dizia-me que algo estava errado.

Muitos natais passei na praia de Santo Amaro de Oeiras, foram giros; era assim, comprava uma garrafa e um bolo-rei, chegado à praia acendia uma fogueira e passado pouco tempo aparecia malta conhecida e desconhecida e confraternizávamos até às quinhentas. Às vezes vou passar a casa de amigos mas eles que me perdoem, não gosto muito pois a tristeza não me deixa, com familiares a tristeza ainda é maior.
Hoje encaro o natal como um 1º de Abril ou como o Carnaval; o consumismo natalício é um desperdício, e que sentido faz um tipo ficar sem dinheiro até Janeiro!? Há bastantes anos que não dou nem quero prendas, de comer o costume na véspera e no dia, e anseio que as canções natalícias que começam a moer-me o juízo nos fins de Outubro acabem.

Quem não gosta não estraga, quem está longe da terra entendo que se encontrem, só nunca entendi porque morre tanta gente no caminho, quem está perto não necessita de dia especial para se encontrar, qualquer dia é dia, sendo que considero o dia do meu nascimento, 2 de Janeiro o mais importante; nesse dia ando mesmo feliz e agradeço aos meus pais que não me conheceram nem os conheci o meu ocasional nascimento, ou será que julgavam eu ser filho de Marcianos?

Nov.2010Casp
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domingo, 14 de novembro de 2010

ARS LITTERARIA (28): Conceição Caleiro recebe Prémio Pen Club

C.C. Islands (2010) / (re)designed by David Zink



O CÃO DE CONCEIÇÃO CALEIRO


O romance de estreia de Conceição Caleiro – O Cão das Ilhas. Lisboa: Ed. Sextante, 2009 –, acabou de ser galardoado pelo P.E.N. Clube com o prémio «1.ª obra».

Na verdade, Conceição Caleiro, habitualmente dedicada aos campos do ensaio e da crítica literária informada, e animadora de comunidades de leitores, ousou saltar a barricada da escrita criativa, estreando-se na «arte do romance» (Kundera) e fê-lo com grande eficácia, ora certificada no reconhecimento pelos seus pares e pela atribuição deste prestigioso prémio..

Importa notar que a autora é uma conhecida especialista da obra de Clarisse Lispector (tema da sua tese de mestrado), e últimamente da obra de Maria Gabriela Llansol - donde vislumbramos ecos no título ("amar um cão"), no uso do pronome comum "Maria" e julgamos que no conteúdo - muito embora o sentido do trágico colocado na primeira pessoa na obra das mencionadas autoras em Caleriro seja deslocado para a 3.ª pessoa, o "herói".

A obra em questão fora já merecedora de substantivos artigos críticos – nem todos encomiásticos, é certo – mas, ainda assim, a provar que a mesma não passara despercebida e tinha substância literária suficiente para merecer o esforço da análise e o espaço mediático.

Nomeadamente, Helena Vasconcelos, refere no Público que «"O Cão das Ilhas" é um livro surpreendente e poderoso, uma tragédia clássica, com fontes gregas e shakespereanas, a primeira obra de uma autora que escreve com segurança e mestria. A construção da narrativa, a utilização de uma voz (principal) masculina e de três vozes femininas, a passagem de umas para as outras com agilidade e autoridade, a beleza quase onírica de certas imagens fazem deste livro uma obra excepcional, com ecos do Antigo Testamento, da tragédia grega, de Ovídio e de George Bataille. Caleiro tanto descreve cenas prosaicas como outras de uma enorme intensidade erótica e dramática, conjugando o carácter realista e os aspectos simbólicos com extraordinária habilidade e dando espaço para um realismo cruel aliado a um ritmo poético encantatório. [...] Romance sobre a escravidão feminina física, emocional e moral [...] é, também, uma história sobre a repressão e o medo, sobre o exílio e a solidão, acompanhando o ritmo de Rafael, esse "cão das ilhas", leal, bravio e livre».


Já H.G. Cancela, em "contramundumcritica", embora reconhecendo que se trata de um «texto cuidado e ambicioso» discorrendo que «Nesta perspectiva, Rafael é o herói intemporal, o amante ferido e escorraçado que agrega em si as sementes imparáveis da vingança. Anjo e demónio, para resumir, numa atmosfera que ao seu passar se contamina e, a passo e passo, condensa o germinar da tragédia quase anunciada», entende que se trata de um «Livro de errância» de cuja leitura releva «as passagens assumidamente eróticas e carnais, fulgurantes indícios de um mal-estar, cru e cruel, que acode aos sentimentos contraditórios do protagonista – nas suas relações, dir-se-ia não existirem afectos, antes ímpetos, não a calmaria do sentimento puro, antes a febrilidade do animal em sangue».
(in: http://contramundumcritica.blogspot.com/2009/10/maria-da-conceicao-caleiro-o-cao-das.htm )
No Expresso, Carlos Bessa, distingue que «O desejo é o leitmotiv do romance de estreia de Maria da Conceição Caleiro, polifónico, com páginas de um erotismo raro na literatura portuguesa. Desejo que traz, inevitavelmente, outras pulsões, como as do poder e da morte, que adensam a narrativa e a tornam aliciante. Particularmente a que decorre da acção de Rafael e de Pilar, ambos ilhéus, personagens e narradores, sendo ainda dois dos vértices de um triângulo amoroso e parte de um crime passional (o último capítulo é particularmente brilhante)». Mais conclui o mesmo crítico que «"O Cão das Ilhas" tem o dom de agarrar o leitor e o conduzir, debaixo da toada tensa e vibrátil da escrita, entre São Miguel, Paris e Lisboa, mostrando que qualquer vida é um corolário de vozes, de enigmas e de pulsões, cujo fim raramente é cristalino».
(in: http://aeiou.expresso.pt/critica-de-livros-de-15-a-21-de-agosto=f530391 )

Posto isto, aqui fica o desafio à sua leitura.
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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ARS LITTERARIA (27): Histórias de encantar, de Luísa Ducla Soares

- Luísa Ducla Soares in the garden of stories (2010) / David Zink


SEMPRE A ENCANTAR OS MAIS JOVENS!


A escritora Luisa Ducla Soares continua a surpreender-nos. No passado dia 7 do corrente mês de Novembro, foi feito o lançamento de mais duas reedições de obras de literatura infantil da escritora Luisa Ducla Soares, no auditório da FNAC Colombo. A apresentação esteve a cargo do também escritor António Torrado.


António Torrado lembrou que a primeira obra – História da Papoila – datava de 1973, altura em que lhe tinha sido atribuído o Prémio “Maria Amália Vaz de Carvalho”, o qual a autora recusou. Luísa Ducla Soares explicou que o prémio era atribuído pelo Secretariado Nacional de Informação, entidade que também exercia a função de censura no nosso país… Daí a necessidade de coerência que tinha sentido e a tinha levado a não o ter aceite - num acto de coragem, como sublinhou o apresentador!

Mas este seria apenas o primeiro prémio a ser-lhe atribuído. Depois disso, recebeu o Prémio Calouste Gulbenkian para o melhor livro de literatura para a infância do biénio 1984- 85 por 6 Histórias de Encantar. Mais tarde, veio a ser galardoada, em 1995, com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra. Em 2004 foi seleccionada como candidata portuguesa ao prémio Hans Christian Andersen, do IBBY (International Board on Books for Young People), geralmente considerado o Prémio Nobel da Literatura para a Infância.

Publicou mais de 80 obras de literatura. Escreveu guiões televisivos, preparou diversos sites na Internet, e em 1999 foi editado um CD com poemas seus musicados por Susana Ralha.

Participou, ainda, na revista didáctica Rua Sésamo (1990-1995). A UNICEF e a OIKOS organizaram, em 1990, uma maleta pedagógica baseada no conto “Meninos de Todas as Cores”, da sua autoria, como apoio ao projecto escolar e exposição “Um Mundo de Crianças”.

Esta nova edição é acompanhada por ilustrações muito coloridas – de Sandra Abafa - que levam qualquer criança a voar no imaginário, para além das palavras que a autora lhe propõe, numa simbiose perfeita que a mim, adulta, me deixou perfeitamente deliciada! Nele se conta a história de uma sementinha de papoila levada pelo vento, que vai ter a uma grande cidade...

O segundo livro – O sultão Solimão e o criado Maldonado - conta em verso a vida de um sultão e do seu criado. Com sentido crítico mas também com muito humor, como é seu hábito, Luísa Ducla Soares chama a nossa atenção para as desigualdades que a sociedade cria entre os homens, preocupação que está sempre subjacente às suas obras.

Clara Castilho

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domingo, 11 de julho de 2010

ARS LITTERARIA (26): Homenagem a uma Rosa... Matilde Rosa Araújo (1921-2010)

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L'Important c'est la rose! In memoriam Matilde Rosa Araújo / David Zink (2010)


MATILDE ROSA ARAÚJO (20.06-1921-06.07.2010)

1) Matilde e eu


História do senhor mar - Foi através deste poema que entrei na primeira fase das minhas relações com a Matilde – a forma como os escritores se dão primeiro a conhecer – pela publicação dos pensamentos/emoções que querem partilhar com os outros. Esta foi a poesia escolhida de “O livro da Tila” para eu dizer, andava ainda na primária, num palco de uma vila (Belas), junto do adro da igreja, na festa anual. Vestidinho branco, como mandava o figurino da época, fitinha no cabelo…

A segunda fase foi a de a ver em minha casa, já amiga de minha mãe, companheiras de acções conjuntas na Ludus (década de 70, para lembrar o direito de brincar, facilitar o acesso ao livro, os primeiros passos da ludoteca/biblioteca).

Numa terceira fase, a partir de 1990, começámos a ser parceiras de iniciativas no Instituto de Apoio à Criança. E a minha foto a declamar o seu poema serviu de tema de paródia.

Sempre me elogiou em tudo o que fazia, deixando-me atrapalhada com tanta benevolência. E não posso esquecer o belíssimo texto que publicou sobre minha mãe, quando ela faleceu, no Jornal de Letras (8.3.94). Generosa em tudo!

Das minhas prateleiras posso tirar "O Palhaço Verde", "O Sol e o Menino dos Pés Frios", "História de uma Flor", "O Gato Dourado", "As Botas de Meu Pai", "As Fadas Verdes" e "Segredos e Brincadeiras" e "A saquinha da flor". Todos com as suas lindas dedicatórias, letra bem desenhada, como ela gostava de fazer. “Gosto de desenhar a letra. A letra tem uma beleza como a palavra tem uma música” (escrevia à mão e depois passava à máquina).

As suas histórias estão cheias de ternura, de ironia, também de realismo sobre a vida de muitas das nossas crianças. Mas também era capaz de escrever: “Limpemos esta floresta que somos. Não queiramos, não consintamos a imolação pelo fogo de muitos de nós. Não consintamos olhar mais a humanidade como vítima de uma morte violenta que quer vingar sabe-se lá que deus menor. Ou sabe-se demais. Porque ela pesa. É de metal” (in: Boletim do IAC - Instituto de Apoio à Criança, n.º 16, Novembro-Dezembro de 1991, p. 1).

Tenho em mãos uma publicação sobre “A Criança e os Direitos Fundamentais”, onde também faço uma reflexão sobre o impacto em Portugal do Ano Internacional da Criança – 1979. Por ela ter pertencido à Comissão Nacional para a organização de iniciativas, pedi-lhe recentemente um depoimento, que ela termina desta forma: “Parto com saudade de um futuro que não viverei mas que tenho a certeza de poder sonhar. Parto com esperança”.

Arrepiei-me toda quando recebi a sua carta. Respeitei o seu sentir premonitório. Mas não fui capaz de lhe responder. E ela se foi com o meu silêncio acobardado.

Quem tem filhos, netos, trabalha com crianças, façam o favor, corram a comprar os seus livros. Só ficam a ganhar!


Este beijinho da Matilde é generalizado a todos, tal era a sua capacidade de receber o Outro, de o aceitar, de perdoar.


2) Matilde e todos nós

Morreu a escritora Matilde Rosa Araújo com 89 anos.

Nasceu a 20 de Junho de 1921, em Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica (1945) com uma tese em que o jornalismo era objecto de análise académica. Foi professora do primeiro Curso de Literatura para a Infância na Escola do Magistério Primário de Lisboa.

Desde cedo preocupada com os direitos das crianças, tornou-se sócia fundadora do Comité Português da UNICEF e do Instituto de Apoio à Criança.

A sua estreia na literatura teve lugar em 1943 com "A Garrana", uma história sobre a eutanásia com a qual venceu o concurso "Procura-se um Novelista", do jornal O Século, em cujo júri de encontrava Aquilino Ribeiro.

Na literatura para crianças, o primeiro título publicado foi "O Livro da Tila" (1957) - escrito nas viagens de comboio entre Lisboa e Portalegre, onde dava aulas a crianças jovens. Estes poemas foram musicados por Lopes Graça.

Os seus livros foram ilustrados por Maria Keil e outros e, mais recentemente, Gémeo Luís e a João Fazenda.

Em 2009, foi publicada a obra "Matilde Rosa Araújo - um olhar de menina", uma biografia romanceada da escritora com texto de Adélia Carvalho e ilustração de Marta Madureira.
Matilde foi membro da Sociedade Portuguesa de Escritores (actual APE). Ocupava um cargo directivo quando foi premiado o angolano José Luandino Vieira, então preso no Tarrafal. Foi motivo para a PIDE invadir as instalações da Sociedade e demitir a direcção. Estávamos em 1965. Matilde falava disto com a sua habitual ironia ….

Em 1980 recebeu (ex-aequo com Ricardo Alberty) o Grande Prémio de Literatura para Criança da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1991, recebeu o Prémio para o Melhor Livro Estrangeiro da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo, Brasil, por "O Palhaço Verde". Em 1994 voltou a receber o Prémio da Gulbenkian pelo livro de poesia "Fadas Verdes". Em 1994, Matilde Rosa Araújo fora nomeada pela secção portuguesa do IBBY (Internacional Board on Books for Young People) para a edição de 1994 do Prémio Andersen, considerado o Nobel da Literatura para a Infância.

O Presidente da República Jorge Sampaio condecorou-a em 2003. Nesse mesmo ano a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) decidiu, por unanimidade, atribuir-lhe o Prémio Carreira (entregue em Maio de 2004), pela sua "obra de particular relevância no domínio da literatura infanto-juvenil ". Nessa altura, ela afirmou que “os jovens lhe ensinaram uma espécie de luz da vida", porque "o seu olhar é de uma verdade intensa e absoluta".

E à Sociedade Portuguesa de Autores voltou, no passado dia 6 de Junho, para que lhe pudéssemos dizer o último adeus.

Pode ser consultada mais informação em:
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/

CLARA CASTILHO

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domingo, 4 de julho de 2010

ARS LITTERARIA (25): Rui Zink escreve sobre Luisão

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Mote e Rima:

«COM LUISÃO, BENFICA CAMPEÃO!»

A propósito do grande tema do momento - a vitória do Benfica no Campeonato Nacional de Futebol (que se lixe a crise, o maior dos clubes portugueses e porventura um dos maiores clubes do mundo em número de adeptos, acabou de dar uma grande alegria a todos estes) - o Diário de Notícias entendeu publicar uma revista especial comemorativa do acontecimento, e, por feliz ideia, convidou vários escritores para deporem sobre os jogadores da equipa vitoriosa, como que a provar que a intelectualidade lusitana não é alheia ao chamado desporto-rei, e que este é perfeitamente capaz de inspirar grandes momentos de criatividade para além das jogadas em campo.

Ars Litteraria, que não vai em "futebóis" enquanto forma de alienação colectiva mas reconhece a beleza do desporto, esteve atento e pediu ao escritor Rui Zink que nos cedesse o seu belo texto sobre o jogador que glosou: o Grande Luisão.

Ei-lo aqui (e é claro, segue o nosso conselho para que corram às bancas para adquirir uma revista que - despidos os preconceitos - ficará nos anais da história da literatura em Portugal (tal como a fabulosa "Sinfonia Benfica" do compositor António Vitorino de Almeida, a qual sendo - inequivocamente - uma das melhores obras sinfónicas de sempre produzidas por compositores portugueses -, por estranho que pareça não está à venda na loja do clube).


Lui-Zão [2010] / (re)designed by DZ


LUISÃO
: uma girafa humana diferente de Charles de Gaulle
/ por Rui Zink


Falam, não falham, as estatísticas: Luísão apenas falhou, este ano, os jogos que não o deixaram jogar. Falou, Luisão! Ao longo de toda a época, foi “uma das três peças firmes” na sacrificada equipa do Benfica. Confere respeito. Mas não é só pela sua arte e fiabilidade que se mede Luisão. É também por algo que podemos ver em campo e que não podemos ver mas também sabemos existir no balneário: carisma. O carisma não é fácil de conseguir: uns têm, outros não têm. É natural, mas dá trabalho. Tê-lo é apenas o princípio das coisas. Saber formatá-lo é a sequência que nem todos conseguem.

É a diferença entre ter autoridade e ser autoritário, entre firmar uma posição e perder o pé. Quando, na primeira mão com o Liverpool (a única de que me lembro), Luisão leva com a mão malandra de Babel na cara (uma provocaçãozinha que, no calor do momento, geralmente resulta), o tiro saiu pela culatra e foi o jogador inglês que levou guia de marcha. Toda a experiência, ciência, presença de Luisão estava ali. Ele nem precisou de pensar, para pensar a coisa certa: “Esquenta não, moleque, cabeça fria, cabeça fria.” É por estas fico sem entender quando na Selecção vejo fedelhos imaturos com a braçadeira de capitão. Porque Capitão, para mim, é Luisão. Como há quarenta anos o era Mário Coluna.

O girafa humana original era o general De Gaulle, um homem tão monumentoso e autocentrado que sobre ele ainda se conta que, um dia, a esposa entrou no quarto estava ele nu e exclamou: "Oh, Mon Dieu!" Ao que De Gaulle respondeu: “Querida, sabes que entre nós podes chamar-me Charles.” Luisão nunca proporcionaria uma piada destas, porque é outro tipo de girafa humana. Não se acha o maior, apenas sabe que tem de ajudar a equipa a jogar o melhor que as circunstâncias permitem. Geralmente consideramos que o verdadeiro artista é o jogador de ataque e o defesa está lá apenas para “obstaculizar”. Não é bem assim: avançado e defesa de equipas contrárias são rivais mas, também, parceiros de dança, como Liedson e Luisão, verde e vermelho, são adversários e amigos. O defesa não está lá para impedir o avançado de brilhar, mas para lhe dificultar a vida. Ou seja, para o ajudar a brilhar. Porque no dificultar a vida é que está o ganho. Sem grandes defesas, não haveria grandes avançados. Luisão é por vezes batido? Claro que sim. Mas ele vai obrigar o avançado contrário a esforçar-se, a dar o seu melhor. Mais do que patrão da defesa ou capitão da equipa, ele é o padrão pelo qual todos os jogadores se deviam medir: mais alto, mais forte, mais sereno. Imagino-o no balneário a motivar os colegas: “Gente, hoje até podemos perder, mas eles vão ter de dar o seu melhor para o fazer.”

Houve muitos momentos memoráveis neste campeonato. É a prova mais nobre, porque é a mais longa. Todas as equipas jogam duas vezes com todas as outras equipas. É o teste que menos depende da sorte de um dia bom, ao contrário da Taça, que também tem o seu encanto, mas se assemelha mais a uma lotaria. Pois para mim, o momento decisivo deste Campeonato Nacional (ainda não me habituei, acho que nunca me habituarei, a chamar-lhe Liga Cergal) foi precisamente o último jogo com o Nacional, na Madeira. A equipa estava cansada, havia nevoeiro, a tragédia recente fazia com que o jogo fosse mais emocional que de costume, o Benfica estava a dominar, mas sem pontaria. Tudo apontava para uma derrota, pois um empate é uma derrota desde que, em boa hora, os americanos inventaram a vitória por três pontos. Eis senão quando, qual Liedson, Luisão resolve. Foi ali que eu murmurei para quem, na tasca do Rafael e da Cristina, me queria ouvir: “Acho que foi aqui que o Benfica ganhou o campeonato.” Podia tê-lo perdido ali. Não perdeu. Luisão resolveu.

Por que motivo puxo por duas vezes (três, agora com esta frase) pelo nome de Liedson? Porque li algures que os dois fora do campo são amigos e desejam o melhor para a carreira do outro. E encanta-me que, precisamente, nos derbies eles sejam não só rivais, por causa das equipas, mas parceiros mesmo num duelo que se arrasta e promete continuar no próximo ano lectivo. No boxe este tipo de amizade não é incomum: o sul-africano Botha e o afro-americano Holyfield comeram um bife juntos dias antes de se massacrarem no ringue. Talvez por ser mesmo um jogo de homens, e não de rapazes, o boxe tem poucos ódios que passam para lá das cordas. Já no futebol português não parece ser assim. O rancor dura e dura e dura… Apagada e vil tristeza, diria Camões, se fosse fã de futebol. E, se fosse fã, talvez até fizesse um soneto a Luisão. Algo como:

Transforma-se o amador na coisa amada
Por virtude do muito imaginar
Luisão, tu até com a bola parada
Sabes que o jogo é muito mais que ganhar.

Contigo a partida fica mais calibrada
E se Saviola, Di Maria, Cardoso, Aimar
Pura e límpida arte são, a atacar
Tu não menos arte és – à retaguarda.

Pois no jogo que é vida, sorte e drama
Patrão és da defesa, da equipa Capitão
E defesa que ataca – e faz xeque à dama.

Tu todo águia és, em alma e coração
Não, não és só o nosso Girafa Humana
És também o firme, o bom, o leal Luisão.
Rui Zink
in: Benfica, o renascer do culto. Diário de Notícias, Maio 2010, ISSN 0870-1954, pp. 38-39


Sinfonia n. 1, op. 21 «Benfica»
, de António Vitorino de Almeida (1940-)
(excerto)
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domingo, 27 de junho de 2010

ARS LITTERARIA (24): Criança, uma obra em aberto... - uma hora com Saramago, por Clara Castilho

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CRIANÇA – UMA OBRA EM ABERTO


“Uma hora com…. José Saramago”

Só estive com José Saramago uma vez. Estava preparando o II Encontro do Centro Doutor João dos Santos – a que chamámos “Transições - da 1ª infância à adolescência”e se realizou em Junho de 2000 - e quisemos terminar um dos dias de uma forma mais informal, trazendo alguém, só para “conversar”, naquilo a que demos o nome de “Uma hora com…” (ideia que pegou e hoje vejo em muitos congressos e encontros). E alguém pensou no José Saramago. Não me lembro bem porquê. E lá lhe mandei um email… Ele acedeu a vir, acabei por não perceber a razão. Terá conhecido João dos Santos? Eventualmente. Só quis saber onde e a que horas o queríamos. E lá chegou a horas, sentou-se com aquele ar sério, conversou e foi-se embora. A verdade é que a sala estava cheia, num fim de tarde, bem tarde…

A conversa está publicada nas Actas desse Encontro. Dela transcrevo:

«… A verdade é que eu não me preocupo assim tanto com as crianças, por muito chocante que isso possa parecer. Aquilo que me preocupa é o ser humano… A criança é um momento da vida do ser humano. O pinto é um momento da vida da galinha ou do galo, o cachorro é um momento da vida do cão, somos momentos. E além disso, quando é que a criança começa? ….Mas a pessoa é uma só, a criança interessa-me na sua relação com o lugar onde está, com as pessoas com quem vive, de quem é beneficiária, ou de quem é vítima. Essa tendência que passou da criança-mártir à criança-rei, isso é um lugar comum, mas que no fundo corresponde a esta realidade. …. De que crianças estamos a falar? Das desprotegidas…? Há uma altura em que nós não podemos resolver o problema das pessoas, individualmente consideradas, se não dermos uma volta à sociedade em que estamos a viver…. E isto tem uma relação íntima com aquilo que eu disse, quando digo que a criança que eu fui é tão minha hoje, como eu não era dela então, porque eu ainda não tinha crescido. Mas eu conservo essa criança ...».

Quando fui visitar a exposição sobre ele, no Palácio da Ajuda, em Abril de 2008, vi lá um filme, feito a partir de um livro infantil. Mais tarde começou a correr entre emails. Pode ser encontrado no youtube – “a flor mais grande do mundo José Saramago”. Uma outra forma de o recordarmos.
Clara Castilho


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domingo, 21 de março de 2010

ARS LITTERARIA (22): O Anibaleitor : reedição de uma obra-prima da literatura universal




Uma das obras-primas da literatura universal de expressão portuguesa (podemos dizê-lo sem rodeios, sendo que já o fundador da publicações Europa-América, Francisco Lyon de Castro, afirmava publicamente há anos atrás que o escritor em causa iria ser o próximo Prémio Nobel português), o Anibaleitor, de Rui Zink, cuja 1.ª edição de há muito esgotada saíu com a chancela da FNAC em edição comemorativa do Dia Mundial do Livro 2006, volta a ser editado em Portugal, com algumas modificações, desta vez sob a égide da prestigiada Teorema, a editora que tem vindo a publicar os mais recentes livros do escritor. Pelo meio, contam-se traduções desta e doutras obras suas em várias línguas, inclusive esgotando sucessivas edições nalguns países, podendo falar-se de um merecido êxito internacional reconhecido pela crítica.



Trata-se de uma obra de uma grande inventiva meticulosamente construída (ou não fosse Rui Zink o introdutor em Portugal dos Cursos de Escrita Criativa) - de forma que somos impelidos a só parar de o ler quando chegamos ao final -, mas que se oferece simultaneamente como um hino à literatura e que, pelo seu estimulante didatismo criativo, se constitui como um magistral incentivo à literacia, e - Alô Dr.ª Isabel Alçada! - como tal devia ser de leitura recomendada nas escolas.



Concebido como uma parábola que tem como antecedente bibliográfico o Sermão de Santo António aos Peixes, do P.e António Vieira (1608-1697), desta feita em peculiar diálogo de uma criança com um estranho animal - o Anibaleitor - e que sem deixar de ser mordaz e irónico, constitui pelo seu enredo onírico de evidente ternura pela aventura humana, aqui exposta sob a relação entre uma criança e um "monstro", um contraponto apolíneo ao último "romance" do autor - O Destino Turístico - esse livro dionisíaco de uma genialidade ácida que reflectia sobre os caminhos da Era Bush. Ou seja: a despeito do nihilismo em que o mundo se vê mergulhado, entreve-se aqui uma porta para uma nova Era de Esperança, com uma clara mensagem: É pela cultura, e só mediante esta, que nos podemos salvar!


«(...) Levei as costas da mão aos lábios, com horror:
-Tu... Tu comes mesmo pessoas?

A criatura fez um ar modesto:

- Bem, o que posso dizer? Sou um freguês de muito alimento.

- A sério? Comes mesmo?

- Gosto muito, sobretudo de língua portuguesa...»

Ora, enquanto o Destino Turístico tinha os adultos como público-alvo, este Anibaleitor destina-se preferencialmente aos jovens, ainda que os adultos não deixem de poder maravilhar-se com ele, o que certamente sucederá (apostamos) com aqueles que o lerem com atenção.

Parafraseando um aforismo popular, se há certas iguarias que "são de comer e chorar por mais", este é certamente um daqueles livros que "são de ler e clamar por mais"!

ver convite para a apresentação pública em:

http://arsintegrata.blogspot.com/


Nota:

Rui Zink é doutorado em Literatura Portuguesa pela FCSH-UNL, Professor na mesma Faculdade e autor de vasta obra ficcional e ensaística. Desde que em 1987 publicou Hotel Lusitano, o seu primeiro romance, publicou já mais de três dezenas de títulos. Destes, destacamos Homens-Aranhas (1994), Apocalipse Nau (1996), A Espera (1998, rev. e aum. 2008), O Bicho da escrita (2004 - na shortlist do prémio Pushcart), Dadiva Divina (2004 - Prémio Pen Clube 2005), A Palavra Mágica (2005), O Anibaleitor (2006, rev. 2010), O Destino turístico (2008 - Prémio Ciranda 2009).

Para mais informação ver: http://ruizink.com/acerca-2/

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

ARS LITTERARIA (21): Revelação de um novo segredo de Fátima - crónica de Rui Zink

-Chanson d'amour sacrée et profane (2009) / David Zink


Obrigado, padre Rui


Finalmente uma boa notícia! Poucas coisas nos fizeram sorrir tanto nas últimas semanas como a fuga romântica, o rapto sabínico, o amor estouvado e cândido do padre Rui em Terras de Basto por uma moça de seu nome Fátima. Há semanas que todos pedíamos aos céus um motivo, um que fosse, para nos levantarmos da cama neste Portugal sucatinho, dissoluto, frio, estupidamente material. A história já virou lenda: os dois jovens apaixonaram-se secretamente na mansidão da catequese e, com a paciência que só os santos e os amantes têm, aguardaram que Fátima atingisse a maioridade. E só então fugiram, parece que para Espanha. Bom destino: Paris está muito visto, cheio de casais em escapadelas culposas, e a malta acaba toda por encontrar-se. A Espanha é mais recatada, sobretudo em época baixa.

O fascinante é que nem Fátima (hoje 18 anos) nem o padre Rui (28 anos) são, a acreditar nos relatos dos vizinhos, muito vividos. É pois um amor casto e puro, como aquele cantado na Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, que, em seu tempo, fez furor na Europa. Como todos sabemos, trata-se de uma conversa entre três cardeais, o francês, o espanhol e o português, cada um contando suas aventuras de juventude. O francês é um sedutor, como todos os franceses, e o espanhol um gabarolas, como todos os espanhóis. Mas quando perguntam ao nosso se também já teve “um caso”, ele responde com o imorredoiro verso: “Pode-se lá viver sem ter amado alguém!” Depois, passando aos pormenores, descobre-se que só o português (tinha de ser) amou à séria. O cardeal da peça sucumbe, choroso, à memória do amor frustrado. O padre Rui, esse, redime-o hoje. E a nós todos, nestas vésperas de nascimento do Menino. A própria Igreja mal esconde o seu sorriso benévolo perante o amor dos dois jovens. E como não? Ao descobrir esta nova vocação, o padre Rui (bonito nome, por sinal) deu-nos ainda, coisa não de somenos, uma razão mais para acreditar em Fátima…

Rui Zink
in Metro, ano 6, n.º 1111, de 2009-12-02
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sábado, 31 de outubro de 2009

ARS LITTERARIA (20): Rui Zink reveals a Divine José Saramago in the nobel prize's last book, "Caim" (Cain)

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S(even Saramago) is a Divine number (2009) / David Zink


A propósito de "Caim", o último livro de José Saramago, prémio nobel da literatura, e do que dele se disse, Rui Zink, revela-nos a derradeira prova da existência de Deus...


Um santo homem


Querido Metro,

acho que há uma prova da existência de Deus: é que uma entidade da qual passamos a vida a falar tem forçosamente, nem que seja na nossa cabeça, de existir. Aliás, quando está escrito “No princípio é o verbo” isso dá para os dois lados, como de resto tudo no texto bíblico: dá para falar da criação do mundo (foi a Palavra Divina), e também para dizer que é através da palavra (humana) que a humanidade descobre Deus. Por isso me zango quando as pessoas dizem “é só conversa”, “o silêncio é d’oiro”, “eles falam, falam, falam”. É que não é só a falar que a gente se entende, é a falar que a gente é gente. No princípio é o verbo? Pois no meio e no fim também. A palavra é divina, mesmo quando não é palavra divina. Dito isto, confesso que gosto muito do Saramago e gosto muito da Bíblia. Ambos têm idade para merecer o nosso respeito e ambos dizem coisas controversas, umas vezes mais acertadas, outras mais perturbantes – mas sempre folgazões e intrigantes. Um grande livro, um grande homem, e sobretudo ajudam-nos a viajar. No viajar é que está o ganho. Saramago não é teólogo? Graças a Deus, pois a religião é uma coisa demasiado séria para ficar só entregue a especialistas. O bom José tem a autoridade de quem conviveu com o mundo e a linguagem ao longo de toda uma vida. Não será um erudito do texto sagrado, mas pensa pela própria cabeça, sabe ler, leu muito, tem voz própria, e é isso que se espera dum escritor. E querem maior prova da existência de Deus que um ateu, aos 87 anos, esmiuçar o episódio de Caim, o proscrito, resgatando-o como irmão humano? Ou gesto mais generoso do que estender a mão ao primeiro dos “malfeitores”, ao contrário dos que (tenho uma lista) passaram estes dias a praticar a triste arte da preterição, dizendo que nem vale a pena falar do assunto de que estão a falar? Com franqueza, se isto não é um santo homem, indiquem-me o vosso santo caixote do lixo.

Rui Zink
In: Metro, ano 6, n.º 1088, de 2009-10-28

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domingo, 12 de julho de 2009

ARS LITTERARIA (19): A visita de Deus, narrada por Pedro Sevylla de Juana

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God's visitation (2009) / David Zink



A visita de Deus


Na vasta extensão rodeada de terreno arborizado, sedosa pradaria dividida pelo curso em arco de um regato bem nutrido, ao princípio do Outono, quando a Lua perseguia sua plenitude circular, enigmático e aprazível apareceu o Ente. O velho Liparus Glabirostris, da família dos Curculiónidas, profundo pensador e professor exímio, receou sempre. Desconfiava do suposto deus inclusive na época de general arroubamento. Não era para menos, a estranha aparência -tamanho e forma- ajudava em alto grau despertando braçados de suspeita.

O Ser, delimitado por linhas suaves e planos carentes de ângulos, aceitava as olhadas interrogantes sem suspender a emissão de sons compassados, sugestivos até para ouvidos insensíveis à cadência ordenada. No seu interior impenetrável abrigava, sem assomo de dúvida, algum tipo de vida afastada da convencional. Livre de fome e sede, em harmonia com a agradável temperatura ambiente, atuava como qualquer recém-nascido satisfeito, ainda que desprovido do gracioso bracejo e do gesto encantador. Permanecia no próprio lugar de sua aparição, expressava-se utilizando um complexo linguagem de signos visuais e acústicos, e não manifestava dependência alguma do exterior. Resulta compreensível que centenas de conjeturas se tecessem ao redor de sua privativa natureza.

O velho Liparus pôde reconhecer nele determinadas qualidades da condição divina. Saltava à vista que era alheio a tudo o conhecido. Certo, diferia sua essência das peculiaridades primordiais dos três reinos; não parecia pedra, não parecia planta, não parecia animal. O estado de repouso em que se encontrava imerso devia de ser transitório, pois tinha chegado até ali desde algum lugar tão remoto que não lhe precedeu a notícia de sua existência. A aptidão para trasladar-se ao ditado do desejo lhe proporcionava uma independência amplíssima: rasgo que distingue aos seres superiores. Único, autónomo e inexplicável: semelhantes atributos constituíam os fios que bordavam a perfeição de sua índole. Carecia, pelo contrário, da primeira das qualidades que os deuses exibem: a capacidade sem limites de influir no curso dos sucessos, geradora de prodígios que ressaltam uma trajetória extraordinária. Atitude oposta à de um demiurgo amoroso de sua obra, aparecia, somada, uma inescusável despreocupação pela formosura da verde floresta, pelos inverosímeis raios de sol que filtrava, pelo rumor harmonioso da água ao acometer os meandros e estreitezas, e até pelos curiosos que lhe cercavam com ânimo investigador. Nesse ponto exato, equidistante do sim e do não, impossibilitada para desprender-se, ancorava Liparus sua dúvida.

Talvez fora só um clarão da mobilidade potencial, mas a agitação se ensenhoreava do interior. O que podia ser tomado pelo rosto, superfície circular de um cilindro achatado, espelho do sensível coração, efetuava estranhos trejeitos a cada instante. Os reflexivos pesquisadores, encabeçados por Calathus Melanocephalus, pertencente à família dos Carabídeos, e seu mais direto colaborador, Agonun Dorsale, primo seu; constataram que mudava a forma seguindo um processo repetido a cada dia. Tomando o anoitecer como ponto de referência, a metamorfose reproduzia seus passos, um após outro, de crepúsculo a crepúsculo; reiteração, método.

“Prodígios? Consegue ser portento suficiente a comoção ocasionada pela sua vinda até nos mais céticos”: argumentavam os partidários, dirigidos pelo eleito coordenador de famílias Prionus Coriarius, o maior dos Longicórneos: “Negligência ante a criação? Veio para permanecer a nosso lado; eis aí o grande exemplo de carinho que necessitava este mundo egoísta”. “Sim, sua existência é monótona e repetitiva, mas, feitos a sua imagem e semelhança, nossa própria existência é repetitiva e monótona. Nos deslocamos perseguindo o alimento, nos agita o desejo de copular, corremos para atacar ou fugir. A Divindade repousa porque se basta a si mesma: nada lhe falta e a nada teme”.

Os religiosos vincularam com esse argumento, mais que com nenhum outro, o meritório modo de alinhar as condutas pessoais trás a forma de ser atribuída à Divindade. “Aquilatemos o processo de nutrição rejeitando a gula. Limitemos a cópula às exclusivas exigências da propagação da espécie. Abracemos nossos inimigos. Só dessa maneira seremos capazes de amansar nossa agitação culpável. E sentenciaram: “A calma é o bem e o tumulto o mal; na redução das necessidades apoia-se a virtude”.

Surpreende a instabilidade das convicções generalizadas na sociedade: os Escolítidos, cavadores de galerias corticais - até então tachados de simples e parcimoniosos - passaram a ser percebidos como coerentes e equilibrados. “Viver para ver”: pensavam os suspicazes.


O Círculo de Teólogos, por encargo do estamento crente, soldou entre si várias cavilações formando um verdadeiro corpo de doutrina, dogma de obrigado conhecimento e imediata difusão. Avançava o credo pela senda racional até o limite de suas possibilidades, momento em que fazia uso da fé. “A Divindade existe desde antes dos inícios, porque é o início; e seguirá quando tudo se extinga, porque o conhecido e o suspeitado têm nela sua raiz e seu sepulcro. A Divindade não necessita engendrar descendentes, porque sendo única ao tempo é eterna”.


Dytiscus Latissimus, da família dos Ditíscidos, aparecia em público luzindo a casula amarela e preta de aparência solene, ladeado por seus acólitos, dois luminosos Lampírides. Partindo das verdades teológicas propagadas há pouco, tinha fundado o Imobilismo Expectante, irmandade integrada por um crescente número de adeptos. Subido a qualquer saliência, e dono de todas as respostas, perguntava: “Que razão teve a Divindade para tomar corpo e vir com nós? Mistério. Mistério que as mentes correntes como as nossas não podem compreender. Veio, e isso deve encher-nos de orgulho e regozijo; quis servir-nos de guia e exemplo, e isso deve bastar-nos. Mas, cuidado, poderia ir-se; devemos cumprir, num instante e até o último pormenor, os ditados de seu temperamento. Me encarregarei de interpretar e divulgar suas mensagens com a assistência dos discípulos mais comprometidos. Eles e eu renunciamos desde este mesmo momento ao acasalamento, e nossa mobilidade roçará o limite da estática. Os irmãos na fé construirão uma Ara onde os fiéis possam adorar à Divindade e pedir-lhe dons. Além disso contribuirão a nosso parco sustento”.

Enquanto tudo o dito sucedia na pastagem que bordeia o arroio, o extravagante Ser continuava sua atividade mínima. A deidade, uma cabeça redonda e plana da qual surgiam dois grandes apêndices desiguais, amorosos braços dispostos a fechar-se ao redor de qualquer eleito, apenas dava sinais de vida. A estranha entidade encarnada dessa guisa, carente de tronco e de extremidades traseiras, insensível ao interesse suscitado no seu ambiente, continuava a sistemática reforma dos rasgos faciais e a entrecortada emissão de sons, audíveis a considerável distância.

Sem estorvos dignos de ser tidos em conta, Carabus Coriaceus, caçador astuto e guerreiro de tenacidade reconhecida, tomou o mando dos soldados em uma cerimónia memorável. Ao pé do altar - argila ainda húmida recoberta de pequenas pedras de cores - uma charanga formada por Gryllus Campestris e Oecanthus Pellucens, músicos estrangeiros, batia os élitros em homenagem à Divindade. Animosa, atacava com brio marchas capazes de alertar aos casacas verdes, guarda composta por Lytta Vesicatoria; e aos casacas roxas, escolta de Meloë Violaceus. Ao seu compasso, a cohorte de ferozes machos Lucanus Cervus, desfilava em estado de excitação combativa. Chefes, soldados e uma boa parte da população, viam na Divindade o grande caudilho que tornaria respeitado e temido à ordem Coleóptero; orgulhoso da complexa diversidade das famílias que o integram, das poderosas mandíbulas de seus indivíduos, da beleza das asas, da funcionalidade de antenas e escudo e do notável modo de vida conseguido. Por último se apresentava a ocasião de submeter aos povos vizinhos, exigindo inchados tributos. Teriam a oportunidade de vingar a histórica afronta dos odiados Himenópteros, em particular dos Apócritos, em extremo laboriosos e rápidos viajantes.

Dytiscus, Prionus e Carabus andaram distanciados durante uma comprida temporada por questões de âmago: haviam de dilucidar quem dos três ostentaria a supremacia. A força proporcionava argumento a Carabus, Prionus esgrimia sua representatividade, a genuína vontade do povo; mostrava Dytiscus na sua mão a chave da vida eterna. Reunidos em parlamento sendo já noite cega, após ásperas discussões se descobriram compartilhando objetivos: a permanência da Divindade, a proteção da identidade coleóptera e o estabelecimento de uma nova organização social. Acordaram unir seus esforços e tomar o poder formando um triunvirato de pares. Como primeira medida sopesaram as consequências de ilegalizar a investigação filosófica, atividade supérflua quando se conhece cada palmo das numerosas ramificações da verdade. Só o temor à rejeição dos puristas lhes inclinou a penalizar as condutas em vez dos princípios. No dia seguinte, o obstinado praticante da lógica Calathus Melanocephalus, e o escrupuloso docente Liparus Glabirostris, perseguidores da certeza dos fatos provados, acusados ambos de intrigantes foram confinados no seu domicílio.

Um estrangeiro, Lygaeus Saxatilis, Grande Sacerdote do aliado ordem Heteróptero, com o propósito de introduzir o novo culto entre os seus, solicitou licença para estudar a natureza da Divindade e as teorias que a explicavam. Locusta Migratória, chefe dos Quelíferos, pelo contrário, denunciou que o crescimento do exército coleóptero – soldados, armas e bagagem - transgredia os acordos do pacto assinado depois da Grande Derrota. Se somaram à desaprovação, Tettigonia Viridissima em nome dos Ensíferos, Blatta Orientalis, Grande Chaberlán dos Blatarios; e muitos outros: Dermápteros, Odonatos, Apterigotos e Efemerópteros, que no crescente belicismo dos Coleópteros viam um perigo para a paz entre as diferentes Ordems.

Calathus e Agonum, na sua tentativa de escapar de uma morte certa, burlaram o cerco imposto a seus domicílios. Se ocultaram logo na derme telúrica, e seguindo túneis larguíssimos surgiram no território dominado pela ordem dos Himenópteros, vencedora da Grande Guerra, que após um longo período de coexistência pacífica, volvia a ser considerada hostil por causa da portentosa mobilidade de seus indivíduos. Ali prosseguiram Agonum e Calathus o estudo dos numerosos dados recolhidos, ajudados por conscienciosos pesquisadores locais: um grupo de Apis Mellifera e o controvertido Vespula Vulgaris, dissidente himenóptero amparado ao asilo dos coleópteros e retornado a sua pátria de modo encoberto. Tal escrutínio derivou em um melhor conhecimento da substância divina, de cujas características podia derivar-se utilidade prática. As raias de forma cambiante desenhadas no círculo capital, coincidentes uma e outra vez em momentos semelhantes de diferentes dias, serviriam para dividir o tempo em frações exatas e alcançar a tão desejada simultaneidade das atividades comuns.

Seguindo indicações de Véspula, duas vezes traidor, a incursão noturna dos Lamia Textor ao serviço de Carabus Coriaceus, encontrou o laboratório, destruiu os valiosos documentos e degolou aos pesquisadores absortos nas suas coisas. Sofreram os opositores um revés próximo ao desastre, e a Divindade foi adorada em qualquer lugar, pois os fiéis reproduziam ad líbitum a sagrada imagem, traçando o círculo capital e as duas raias laterais de seu emblema.

Estendido o culto, generalizados os sentimentos piedosos, sincronizada a vontade comum, a ordem dos Coleópteros entrou na etapa mais frutífera de sua história, carregada de motivos para dar as graças à Divindade. Era indubitável que a Entidade, protetora dos crédulos, propiciava o progresso com sua única presença. Entre isto e aquilo se desnudaram as árvores de folha caduca, orgulhoso de sua força paralisante chegou o frio, e em um lapso breve foi expulso pelos dias radiantes de sol e sossegados de ventos. A vida eclodia de novo e um grupo de crianças de Homo Sapiens se apresentou na esplanada com sua ordinária algaravia. Desde os mais profundos cantos das luras, desde as taças mais altas das árvores, medrosos, cautelosos, os insetos todos perceberam a renovada calistenia das evoluções lúdicas. Ao entardecer ouviram com nitidez as seguintes palavras, cujo significado desconheciam: “Olhem, um nicho de argila adornado com pedras de cores. Guarda um relógio de pulseira. Ah! A pilha está já nas últimas: os números mudam muito devagar e a música quase não se ouve”.

Horas mais tarde, apaziguado o contorno, caiu a noite e a normalidade se hospedou na pradaria, no terreno arborizado circundante, no arroio que os cruza. Só então os insetos se atreveram a sair de seus esconderijos: um pé e depois outro, receosos ou temerários; e tudo para descobrir que a Divindade tinha partido deixando vazio o altar. O Chefe Religioso Dytiscus Latissimus, lembrou orgulhoso seu vaticínio acerca do que acabava de ocorrer. Alguma ação ou omissão ofenderia à Divindade. Unicamente a penitência podia favorecer seu retorno. Começou então um reiterado exercício de laboriosidade e obediência cega às autoridades civis, religiosas e militares. Ainda ficava alguma esperança.

Pedro Sevylla de Juana

http://www.sevylla.com/

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sábado, 18 de abril de 2009

ARS LITTERARIA (18): a Lovecraft story, by Rui Zink


Recebemos novas do escritor Rui Zink, que actualmente se encontra a dar aulas na University of Massachussets Dartmouth, e um novo conto - Love Craft - em torno da metafísica das realidades virtuais e dos amores cibernéticos, que abaixo reproduzimos:

Craft models (2009) / David Zink


LOVE CRAFT

Tal como os lutadores profissionais estão como zombies entre combates – e essa espera pode durar meses – também ele se sentia desempregado, apenas meio vivo, entre cada noite. Não, nem sempre sonhava com ela, aliás nem sabia quem “ela” era, e muitas vezes mesmo sem se recordar de pormenores sabia que o sonho tinha sido um pesadelo e que acordava mais cansado do que quando se deitara. Mas sabia que só quando dormia se encontrava – fosse com o que fosse. Com “ela”, com os monstros lovecraftianos que havia na sua psique, com a essência divina da aventura humana, com a verdadeira e secreta geometria do planeta. De dia, pálida sombra de uma coisa qualquer. Mas atenção, não era só de dia. Não se tratava aqui de nenhum culto romântico da “noite” ou de álcoois tardios no Bairro Alto. Era o sono, apenas o sono. Napoleão justificava a insónia com o não querer que o império lhe escapasse por entre os dedos enquanto dormia. Ele era o contrário: tinha medo que a verdadeira vida lhe escapasse por entre os dedos enquanto estava acordado.

Que, depois, mal ou nada se lembrasse dos sonhos, era apenas um pormenor, lamentável (por uma questão de satisfação), mas sem grande importância.

Esta história podia ter um final feliz, porque um belo dia foi atropelado numa passadeira e entrou em coma. Finalmente estava totalmente imerso num contínuo onde delícias e horrores eram apenas duas das mil e uma faces de um mesmo oceano. Mas, a pedido da mulher, desligaram a máquina.

Rui Zink
Massachusetss, 2009-03-29

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sábado, 28 de março de 2009

ARS LITTERARIA (17): Apocalipsis - novo (en)CONT(r)O da alegoria

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A respeito do juízo final



- Prometeram os diferentes deuses a fiéis e infiéis um exame imparcial no final dos tempos, e um veredicto concludente. O prémio ou castigo eternos seriam as ineludíveis consequências. Pois bem, para os habitantes passados e presentes de todos os planetas e galáxias do Universo, chegou essa hora.

Assim inicia seu parlamento o porta-voz escolhido em Castela e Leão pelo Deus dos Cristãos Católicos. De boa figura, ergue-se na saliência que representa Valdepero respeito à Terra de Campos, a vasta planura desprovida de árvores que contém parte das províncias de Palencia, Leão, Zamora e Valhadolid, onde escuta o auditório. Chega a sua metade o dezasseis de março, e a cúpula celeste aparece sombria, mal iluminada por um sol lívido.

- Quis Nosso Senhor reuni-los neste lugar, idóneo para acolher tal aglomeração, porque o ponto onde levanta-se o estrado pertence já a O Cerrato, geografia semelhante ao Vale de Josafat referido nos livros sagrados. Naquele espaço rendem suas contas os judeus, congregados em torno de Yaveh.

Cala a voz, e dez mil trombeteiros a reforçam com uma rajada musical ao mesmo tempo inquietante e tranquilizadora. Um gesto enérgico, quase militar, do emissário, os emudece.

- Nosso Senhor julgará a cada indivíduo separadamente, mas, isso sim, o conjunto declarará de maneira simultânea. Os julgados exercerão sua própria defesa, sendo, também, acusadores de si mesmos. Capazes de ter emoções e sentimentos, para sofrer idêntico exame, se somam os animais que lhes acompanharam. Se alguém tem dúvidas, agora pode resolvê-las, porque uma vez iniciada a cerimónia tudo transcorrerá mentalmente.

Isso diz o mensageiro, e espera um instante por se alguém dentre o público faz o gesto inquiridor.

- Fale, senhor Sebastián, vigésimo pároco de Villalpando; qual é sua dúvida?

- Entendo que vai julgar-se às consciências e às vontades, é assim?

- Assim é, a diferença existente entre o que achavam uma actuação justa e o comportamento efectivo, estabelecerá a cota de mérito atingida. Esse exame farão no interior de seus corações os questionados, e Nosso Senhor o conhecerá num instante.

- Diga você, Zopenco, asno servidor do primeiro prefeito de Bolaños, qual é sua dúvida?

Ouço um zurro claro, rotundo, quase inteligível, apesar da enorme distância que me separa de onde encontra-se a besta. E ao momento escuto a palavra do porta-voz, entendida por todos os presentes, vaga-lumes e cigarras inclusive.

- A obediência devida, como você a chama, é comum a todas as espécies, incluída a humana; e exime se lutou-se com toda energia contra ela na defesa dos próprios convencimentos.

- É seu turno, formiga sem nome, habitante do termo de Sahagún, entre os rios Cea e Valderaduey em fim do século dois antes de Cristo; qual é sua dúvida?

Ouço um sussurro reiterado e a entoação revela juventude, adolescência talvez, infância ingénua e confiante.

- Quem foram alimento de outros ao princípio da existência, carecendo de tempo para decidir pelo seu cálculo de maneira responsável, e quem nasceram mortos ou faleceram antes de nascer, receberão outra oportunidade. Uma vida nova lhes espera, independente da anterior, sem conexão alguma com ela. Vão ser o princípio de outro ensaio divino, que partirá do progresso conseguido no qual agora conclui.

- Pergunte, vírus do tipo A(N1H1), participante na epidemia de gripe de 1918; qual é sua dúvida?
Sinto um silencioso estremecimento do qual, no entanto, extraio uma concreta mensagem.

- O contágio que eu estendi e prolonguei, matou setenta milhões de pessoas; agrava meu pecado a enorme dimensão da tragédia ocasionada?

- Você foi instrumento das leis naturais em vigor, tira e afrouxa que procura equilíbrio e melhora tudo o existente; se não pôs intenção adicional, vingativa por exemplo, nada reprovável há na sua conduta.

Termina o preâmbulo explicativo, e no preciso instante, quando toma o sol a sua primigénia excelência luminosa, envolvido num ressonante clamor de trombetas, acção harmonizada de cem mil elementos, irrompe o Deus dos Cristãos Católicos em forma de nuvem transparente que o cheia tudo, juiz supremo de sentença inapelável.



Pedro Sevylla de Juana





Biografia
Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), a Espanha, em Março de 1946. Desejoso de resolver as incógnitas da existência, começou a ler livros aos onze anos. Para explicar suas razões, aos doze se iniciou na escritura. Viveu em Palencia, Valhadolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tânger, Paris e Ámsterdan. Publicitário, conferencista, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou dezassete livros. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro a suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever.